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De neta para avó, algures no século II

Gonçalo Cruz
Opinião \ quarta-feira, maio 22, 2024
© Direitos reservados
Na face posterior participam juntas no banquete fúnebre, a neta Júlia fisicamente presente faz uma libação sobre a ara, observada pelo espectro da sua avó Peicana.

O hábito de perpetuarmos mensagens de memória e de saudade aos entes queridos falecidos pode parecer-nos uma coisa recente porque,  há umas quantas décadas atrás, poucas sepulturas eram providas com elementos de homenagem ou de monumentalização. Ao longo dos séculos, só aos personagens importantes ou aos membros de famílias mais abastadas se erguiam túmulos com identificação do defunto ou mensagens de encomendação das almas. Os nossos hábitos funerários atuais, contudo, não são novidade, mas eram antes limitados pelos parcos recursos da maior parte das famílias.

Se há sepulturas antigas que se limitam à inclusão dos elementos formais da época, particularmente os que encerram as fórmulas religiosas, há outros que, como os atuais, refletiam aspetos mais afetivos. Parece ser o caso de um cipo funerário romano, que pode ser também uma pequena ara, existente no Museu Martins Sarmento, proveniente de Vila Fria, Felgueiras. A peça, que terá sido elaborada entre os séculos II e III da nossa era, esteve em destaque na visita noturna do passado dia 18, no âmbito do Dia Internacional dos Museus.

É um elemento em pedra que chama um pouco a atenção, desde logo por possuir quatro faces com relevos esculpidos. A inscrição latina é relativamente simples, fazendo menção a uma defunta de nome Peicana e à dedicante do monumento, Júlia, neta de Peicana, que o erigiu à sua avó depois da morte desta. São também referidos o pai e o bisavô de Júlia, ambos chamados Pintamo. Até aqui, nada de mais.

O cipo funerário de Vila Fria, Felgueiras, no Museu Martins Sarmento

Mas o cipo tem depois os tais frisos esculpidos e é nestes que o monumento se torna singular. Na face frontal, por baixo da epígrafe latina, temos uma figura humana cuja cabeça é envolvida por uma auréola de raios, montada a cavalo; num dos lados temos uma mulher sozinha, segurando um vaso; na face posterior temos uma cena em que duas pessoas, sentadas, fazem uma libação sobre uma ara, um ritual litúrgico; no outro lado, duas mulheres, uma mais alta que outra, transportam um vaso sobre a cabeça.

José Leite de Vasconcelos, escrevendo há mais de cem anos, procurou uma interpretação mais condicente com o seu tempo, vendo nestes relevos a representação do pai e do avô de Júlia, bem como de escravas que transportavam elementos de preparação do ofício representado na face posterior.

A leitura mais recente, que nos chega pela mão de Armando Redentor, é bem mais verosímil, porque interpreta os frisos como a representação gráfica das figuras centrais do monumento, a avó defunta e a neta, que lho dedicou. Nele vemos as duas, caminhando uma em frente da outra, transportando vasos à cabeça, numa das faces laterais, e uma de ambas sozinha, na outra lateral; na face posterior participam juntas no banquete fúnebre, a neta Júlia fisicamente presente faz uma libação sobre a ara, observada pelo espectro da sua avó Peicana que, na face anterior, resplandecente, se dirige para o além, montada a cavalo.

Uma forte mensagem que, sem dúvida, eternizou uma homenagem e ilustrou a forte ligação entre estas duas parentes na Antiguidade.

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