Diz-se...
Diz-se que toda a dificuldade representa uma oportunidade e que toda a oportunidade não é isenta de dificuldades.
Diz-se que é necessário não desperdiçar oportunidades e, sabiamente, enfrentar as dificuldades, tudo transformando e potenciando em benefício.
Diz-se… e acredita-se na bondade do que se diz. Mas, o momento actual não deixa de ser estranho e de dificultar esta crença.
Enche-se o espaço público de um reconhecimento da complexidade da construção da cidade e da inerente necessidade e obrigatoriedade de praticar o diálogo e concertação. Mas, depois, no quotidiano, tudo contestamos e criticamos, nomeando interesses, aventando descuidos e facilidades, promovendo um clima de distanciação e de confronto.
Enche-se o discurso de reclamação por falta de habitação e oferta de edificado ajustado às nossas necessidades físicas e financeiras. Mas depois, preenchemos o espaço público de contestação pela densificação das cidades, pela ocupação de solo maximizada e aproveitamento do investimento infraestrutural realizado com o dinheiro “de todos nós”!
Enche-se o discurso da evidência dos malefícios da dita dispersão construtiva e a má contaminação territorial com edificação atrás de edificação, diversidade de usos e criação de incompatibilidades funcionais. Mas depois, reclamamos a falta de solo para edificar e a necessidade de alargar o perímetro urbano para solo agrícola e florestal, afectando água, ar, terra e fogo.
Enche-se o discurso de lamento pela morosidade e burocracia dos licenciamentos e autorizações, interrogando-se a respectiva validade e utilidade. Mas depois, perante todo e qualquer coisa que não interessa, contestamos que tal não obedece a todos os preceitos legais (por mais insignificantes que sejam) ou não reúne todo os “papéis” …
Enche-se o discurso com a importância da arquitectura na qualidade da paisagem urbana e do ambiente construído das nossas cidades. Mas depois, desprotegemos ostensivamente a autoria e desresponsabilizamos as opções tomadas.
Enche-se o discurso com a obrigatoriedade de centrar a arquitectura na construção e dinamização do espaço urbano. Mas, depois, reclamamos e desregulamos honorários, sobrecarregando na (permanente) fiscalidade…
Enche-se o discurso com a necessidade de uma presença sóbria e contida do automóvel no espaço público. Mas depois, nada nos satisfaz se necessário “deixar o automóvel a 5 minutos do nosso destino”.
Enche-se o discurso da relevância da participação pública, sendo necessária, direito e dever de todos em contribuir criticamente para o processo de construção e gestão da cidade. Mas depois, uns recorrem sempre aos mesmos expedientes legais para tudo resumir ao “mínimo obrigatório”, outros demitem-se de procurar informação, analisar, estudar e colaborar em nome de “falta de tempo” …
Enche-se a boca de “tanta coisa”, de tanto politicamente correcto, tanto devidamente legitimado e necessário. Mas depois, deixamo-nos tomar pelo comodismo ou facilitação. Ou pelo egoísmo em sobreposição ao interesse comunitário.
Enche-se a boca de crítica, de contestação feroz, de pedidos de demissão, de crítica sobre opções, de acusações de incompetência. Mas, depois, invertendo-se as posições, inverte-se o discurso e fazemos da coerência uma cambalhota sem controlo ou proporção.
Enche-se o discurso de tanto que, tantas vezes, fica a sensação de farta satisfação, de inegável saciação. Mas depois, descoberta a “vera realidade”, percebemos a nossa parca alimentação. E o quanto desaproveitamos e desperdiçamos… será hora de esvaziar para voltar a encher doutra forma?