Eu acuso: elites de Guimarães do século XIX, como foi possível?
Reza a triste lenda que, em 28 de Novembro de 1885, constava da ordem de trabalhos da Junta Geral do Distrito de Braga o alargamento dos cursos do Liceu de Braga, o que implicaria o consequente reforço de contribuições por parte de todos os concelhos do distrito, isto, para se fazer face aos encargos com a sua manutenção. Os procuradores de Guimarães (Conde de Margaride, Joaquim José de Meira e José Martins Minotes) votaram contra, o que impediu que fosse aprovada a proposta. Ato contínuo, no que ficou conhecido pelo “Motim de 28 de Novembro”, ao abandonar a cidade de Braga, os representantes de Guimarães foram apupados, insultados e apedrejados. Na resposta “fortíssima”, as autoridades do nosso concelho cortaram relações oficiais com as autoridades distritais e fizeram petição de adesão ao distrito de Porto…
Ora, cumpre perguntar: como possível as nossas elites nada fazerem e não respeitarem o imperativo categórico de forçar com critério de escolha da sede da Junta Geral do Distrito a justiça relativa da importância e dimensão dos territórios em questão?
Um desvio lateral: Não obstante ser um dos mais brilhantes intelectuais da euro-região Galiza-Norte de Portugal, não posso concordar com o Historiador Amaro das Neves (de quem sou leitor assíduo e admirador sincero da qualidade indiscutível do que escreve – aliás, recorro, por vezes, ao neologismo de sua autoria: “cimentérios”, conceito relativo à destruição/diminuição das zonas verdes citadinas na nossa cidade), quando defendeu, num dos seus artigos no “Jornal de Guimarães”, que, em termos de elites, a ínclita geração de Guimarães operou nas proximidades dos anos de oitocentos. Esclarecendo: compreendo o seu critério e fundamento. Partiu das ditas conquistas da debutante civilização industrial vimaranense: construção da Escola Industrial e Comercial de Guimarães, elevação da Vila à categoria de Cidade, por sábia decisão da Rainha D. Maria II, a chegada do comboio, com ligação para Fafe, já no início do século XX, a cosmopolita realização da Exposição Industrial de 1884 (1910 e 1923).
Adianto: o meu critério é mais soberano, leia-se, para além do extraordinário, isto é, negando primazia de análise ao foguetório e às festanças da chegada de novos deuses do dito progresso e da vanguarda da exploração industrial. De supetão e sem mais demoras: não perdoo, e sim condeno e acuso para julgamento no pelourinho da memória, o olhar de cima e para o lado das elites (na maioria, putativas) por referência à mais execrável e pútrida indignidade e miséria. A pobreza era monstruosa e o herói verdadeiro de todos os tempos, o povo, estava entregue a si próprio, atento um ecossistema social de indiferença, desprezo e altivez da burguesia venal sem valores (com o único valor do lucro a todo o custo, mormente, da servidão e exploração do trabalho infantil). É doloroso existirem declarações das nossas ditas elites (estão documentadas) em que, sem pudor e em pose nobre dos iluminados em oco saber das sebentas académicas, culpam as famílias exploradas e pobres pela sua condição: i) que é da sua culpa os filhos trabalharem com 9 e 10 anos, pois, os pais, quais atrevidos, inventariam a desculpa de que todos os braços seriam poucos para colocar o pão da dignidade na mesa; ii) e que a indústria estagnava, apenas e só, em razão do nível analfabetismo e baixíssima instrução e total ignorância dos operários. Assim, para esta triste elite, a culpa da miséria era da miséria. A exploração laboral era mito transcendente: em boa e justa verdade, os operários eram uns sortudos que tinham quem lhes desse trabalho, sem pagar o justo salário.
Para mal dos meus pecados, pois, custa-me dizê-lo, uma parte não negligenciável de membros do clero da minha Igreja Católica, pactuava e sentava-se às mesas fartas dos patrões e das elites e esquecia-se dos ensinamentos de Cristo. Era usual, vergonhosamente usual, nas catequeses e nos ritos e práticas religiosas, tratarem os filhos dos patrões, ditos empresários, e das elites togadas e de linhagem por “meninos” e os do povo, eram os “rapazes”, com direito exclusivo destes a prémios constantes de afagos açoitados, ditos corretivos, à antiga cartilha para os pobres. Todas estas elites e corpo social de privilégio, por ação e omissão, humilhavam e forçavam o ajoelhar de quem nada tinha e nada podia fazer, sob pena sumir-se o único ritual nutritivo: a côdea e o resquício de toucinho, com menos de 10 feijões a dançar com 2 batatas esquartejadas em pedaços mil e 3 couves, e muita água, e mais água, para adormecer inchado-saciado, com a fragrância de sonho de migalhas (em homenagem e ilustração emocionada, permitam que vos convide à visita digital da pintura de Vicent van Gogh, “Os Comedores de Batata”). O único conforto destes Gigantes era o amor e a união familiares face ao inimigo externo (todo o meio social indiferente às suas agruras e lutas), bem como um interior conforto, germinado pela nobreza da sofisticação na honestidade e na noção da decência. A força para acordar e levantar, pela matina, das camas de colmo, forradas em terra batida, vinha de dentro: que Gigantes foram os nossos antepassados. Já as elites indiferentes: shame on you.
Voltemos à Junta Geral do Distrito: no século XIX Guimarães era o quarto centro industrial e o sexto maior núcleo populacional do país. Na agricultura, o nosso concelho liderava destacada a produção cerealífera do distrito, com uma cultura intensiva nas 80 freguesias. Ora, juntando tudo isto, incluindo as conquistas civilizacionais e industriais supra inventariadas, como foi possível as nossas elites se atreverem a enviar uma representação a Braga, aceitando esta como sede da Junta Geral do Distrito?
A Justiça e a História impunham Guimarães como capital distrital. E, nós, perante esta iníqua e grosseira ofensa à Santa Justiça, humilhando a grandeza do exemplo de Antígona, ajoelhamos e fomos, quais “meninos” à cidade dos arcebispos.
Lá está: era importante manter a pose-elegância e a elevação-nobre de não questionar quem manda. Tão português o respeitinho pela hierarquia de todos aqueles que convivem e sentam na mesa da pequena-corte-do-poder e estão próximos do status quo reinante.
Como perdoar estas elites que silenciaram de forma ignóbil não obstante termos umas das taxas de mortalidade mais vergonhosas do país: emociona avançar com os números. Mas, aqui vai: de 1840 a 1899, morreram mais de 500 crianças com menos de 7 anos (mortalidade infantil de uma indignidade sem nome) e cerca de 1500 pessoas adultas (estamos a falar de um espaço temporal de 59 anos). Sim, louva-se o Dr. João de Meira, que foi à luta com a sua ciência para encontrar respostas e soluções. Aliás, este reputado médico, disse: “Em GUIMARÃES os homens não morrem de velhice: morrem de fome, morrem de trabalho, morrem de pouco resguardo contra as intempéries do clima.”
Partindo da condição singular e especial do nosso território sagrado (Capital Histórica e Berço Fundacional de Portugal, bem como Pátria Primeira da Língua Portuguesa), em absoluta humildade, senti-me impelido por um convicto posicionamento cívico-político de acusar e condenar, sem hesitação, quem nada fez e tudo devia ter feito em nome da decência, da verdade e da vida (sim, todos estes GIGANTES MÁRTIRES DO POVO, REDUZIDOS A UM EXÉRCITO DE MISERÁVEIS, nem viveram, nem sobreviveram: foi um genocídio de cadência lenta, mas permanente e integral, sempre em carne e alma vivas. Mesmo não estando lá, sinto-me culpado. Uma culpa coletiva que a todos nós pertence (os factos de que parto estão documentados no livro - que pode ser adquirido nas instalações da Sociedade Martins Sarmento - da autoria da Ilustre Elisabete Pinto, com o título: “Curtidores e Surradores de S. Sebastião – Guimarães: A difícil sobrevivência de uma indústria insalubre no meio urbano.”