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Muxima, mamã do coração

Ruthia Portelinha
Opinião \ sábado, dezembro 10, 2022
© Direitos reservados
O meu coração de mãe afunda. Porque não deve haver desespero maior do que não poder socorrer um filho, sem esquecer outras duas crianças que ficaram em casa, ao cuidado de alguém.

Deixamos Luanda para trás e uma floresta de embondeiros ladeia a estrada até Muxima, o santuário mais querido dos angolanos. São apaixonantes estas árvores que o Principezinho arrancava, com medo que as raízes rebentassem com o seu minúsculo planeta.

A primeira vez que visitámos o santuário mariano mantive um diálogo curioso com uma idosa que não sabia bem onde morava, mas tinha uma certeza inabalável sobre Muxima, a “mamã do coração” na língua kimbundo. A mesma fé que vi replicada em todos quantos cruzam o país para agradecer mais um ano de vida.

Ao contrário do que acontece no início de setembro, mês de peregrinação, hoje está tudo tranquilo nas imediações do primeiro santuário nacional de Angola. Antes de revisitarmos a igreja, estacionamos junto do forte do século XVI, uns quinhentos metros acima na encosta. A sua posição sobre o rio Cuanza, com uma vista belíssima por sinal, explica a construção estratégica.

Como sempre, há alguém junto à cruz gigante a rezar, apesar do sol quase a pique. Como se ali, sob o céu, estivessem um pouco mais perto de Deus. Só que, desta vez, não se trata apenas de fé, percebe-se um tom de desespero. Uma angústia tão pungente, que me atinge como uma estalada e, ainda mesmo sem saber o que se passa, lágrimas assomam-me aos olhos.

Sob o corpo da mulher, enxuta de carnes e prostrada em oração, está um bebé de fralda, deitado sobre um pano. A parca sombra da mãe é fragilíssima proteção do inclemente sol africano.

Impossível não perguntar o motivo de aflição. Entre soluços, a senhora explica que o menino está com paludismo, a arder em febre, que o médico já o viu, mas que não tem dinheiro para comprar os medicamentos. Resta-lhe suplicar intervenção divina, o que faz há mais de um dia, sem comer nem dormir.

 

 

O meu coração de mãe afunda. Porque o paludismo, se não tratado, mata. Porque não deve haver desespero maior do que não poder socorrer um filho, sem esquecer outras duas crianças que ficaram em casa, ao cuidado de alguém.

O pragmatismo sacode o desalento, peço licença para pegar na criança, levo-a para uma sombra e dou-lhe água, enquanto a minha mãe – que regressou ao continente grandioso pela primeira vez em quarenta anos – molha um pano para a refrescar. Reunimos todo o dinheiro que temos connosco, para os medicamentos tão necessários. A última imagem que tenho é da minha mãe com as mãos de outra mãe entre as suas, explicando-lhe como deve fazer um caldo de arroz para manter o bebé hidratado e outras coisas básicas.

O peito enche-se de revolta perante um país tão rico em recursos mas que tem das maiores taxas de mortalidade infantil do mundo, perante um Deus que permite que inocentes sofram. Argumentos que a minha mãe varre com uma simples frase: “Deus enviou-te a ti”. E isso resume o espírito desta quadra. Mesmo sem fé, um gesto para com o próximo, pequeno ou grande, deixa o mundo um bocadinho melhor. Às vezes, salva vidas.

P.S. a foto que acompanha esta crónica é de outra visita a Muxima. No dia em causa, nem me passou pela cabeça fotografar, como é óbvio

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