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O "Eldorado" dos achados fortuitos 

Gonçalo Cruz
Opinião \ quarta-feira, novembro 06, 2024
© Direitos reservados
São duas peças raras? Com certeza que são. Foi um achado feliz? Seguramente que foi. Devem estar num Museu? Sim, sem dúvida. Contudo, desconhecemos por completo o seu contexto.

Chegou-nos eco recente de um achado ocorrido no Reino Unido, um tesouro monetário descoberto ocasionalmente. Terão sido mais de duas mil e quinhentas moedas de prata do século XI, encontradas por um grupo de sete pessoas, entre as quais o proprietário de uma leiloeira de moedas antigas, que recorreram a um detetor de metais e, ao sinal do aparelho, foram "esgravatando" (sic) e recolhendo as muitas centenas de moedas de prata, que lhes renderam, a eles e ao dono do terreno, 5,1 milhões de Euros. Este é, aliás, o fulcro da notícia do Público, que ao descrever a prática como banal, ignorou olimpicamente o facto de a mesma ser, em Portugal, proibida. Como, aliás, bem o sabem todos os detetoristas que, por isso mesmo, praticam o seu "hobby" às escondidas.

São os detetoristas – parte interessada, naturalmente – os que defendem que Portugal está, nesta matéria, "atrasado". Que "proibir não é solução", que graças a estes descobridores amadores, os museus britânicos estão cheios de tesouros, etc. Tudo argumentos convenientes a quem os olhos se lhe riem com a choruda lotaria, recorrendo ao usual argumento de que o "norte da Europa" é muito mais avançado do que nós...

Há um conjunto de razões para considerarmos que a legislação britânica nunca funcionaria em Portugal. Em primeiro lugar, no nosso país, quem encontrasse semelhante tesouro, dificilmente o comunicaria às autoridades. Em segundo lugar, em Portugal, ninguém estaria disposto a adquirir o espólio, a não ser o Estado, e não sem considerável controvérsia. Em terceiro lugar, os museus portugueses também estão cheios e debatem-se com dificuldades extremas para garantir a conservação dos materiais. A mais elementar razoabilidade permite concluir facilmente que há "tesouros" que estão bem melhor debaixo da terra.

Campainhas romanas de Urgezes, Guimarães (foto Patrícia Aguiar)

Mas há depois um segundo conjunto de razões que, na nossa opinião, não enaltecem assim tanto a alegada perfeição legislativa da Grã-Bretanha. É que o contexto dos achados não raras vezes desaparece. Tudo o que se lê na notícia acerca das duas mil e quinhentas moedas descobertas é a sua proveniência aproximada e um conjunto de considerações acerca da invasão normanda, concluindo-se que o tesouro foi enterrado entre 1067 e 1068, sem qualquer base factual a não ser a datação das moedas, que tanto podem ter sido enterradas no século XI, como no século XX...

A imagem que aqui mostramos é de duas peças recolhidas, aqui sim, ocasionalmente. São duas campainhas de bronze que podem remontar à época romana, aparecidas ao arrancar uma árvore, no lugar da Vaca Negra, em Urgezes. O proprietário do achado, o célebre vimaranense Dr. Joaquim José de Meira – que com ele não procurou fortuna fácil – doou, em boa hora, estas duas peças ao Museu Martins Sarmento, em 1921.

São duas peças raras? Com certeza que são. Foi um achado feliz? Seguramente que foi. Devem estar num Museu? Sim, sem dúvida. Contudo, desconhecemos por completo o seu contexto. Não sabemos se tinham uma função eminentemente prática ou simbólica. Não sabemos se eram instrumentos musicais, estritamente, se eram campainhas litúrgicas ou simples campânulas de gado vacum. Até a sua cronologia, apontada por paralelos para o século II da nossa Era, é conjetural. Já não seria assim se conhecêssemos o contexto deposicional destas peças, que poderiam, na verdade, ter indiciado outros vestígios, quiçá mais relevantes, naquele local.

Por muito que a pesquisa amadora, legal ou ilegal, nos possa parecer tentadora, não creio que esta deva ser o futuro da investigação arqueológica. Consequentemente, não consigo ver o cenário descrito pela notícia que referi como um avanço cultural ou civilizacional. Pelo contrário.

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