O legítimo direito aos cuidados de saúde
De várias formas! Porque os médicos de família estiveram focados nos doentes COVID acumulando em espera um número incontável de consultas que deveriam ter sido realizadas, porque nos hospitais públicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) inúmeras consultas e cirurgias não se realizaram e ficaram adiadas “sine dia” e também, de forma muito importante, porque imensos exames complementares de diagnóstico e terapêutica (ecografias, TAC, Ressonâncias Magnéticas Nucleares, Endoscopias Digestivas, Colonoscopias, Eletrocardiogramas, Ecocardiogramas, etc, etc, etc) ficaram irremediavelmente suspensos não se sabe até quando.
É público que antes mesmo da pandemia, já havia longas listas de espera nos hospitais do SNS, apesar destes em muitas circunstâncias, trabalharem já para além dos seus limites (essencialmente por carência de recursos humanos face às restrições impostas pelo poder politico no respeitante às contratações). A correção dessas listas de espera dentro do SNS é inexequível nos próximos anos, pelo que não será possível ao SNS cumprir em tempo útil o artigo 64º da Constituiçao Portuguesa, no que à acessibilidade dos cidadãos e à proteção da saúde diz respeito. Com a pandemia, a situação que já estava má, deteriorou-se ainda mais. Por exemplo, basta ver que em 2020 foram efectuadas em Portugal continental menos 150 000 (cento e cinquenta mil) colonoscopias do que em 2019, essencialmente por falta de acessibilidade dos cidadãos aos cuidados de saúde. Ao mesmo tempo, gravíssimo é reconhecer-se que a colonoscopia é imprescindível na prevenção e diagnóstico do cancro do intestino, que é de todos os cancros o mais frequente em número de novos casos por ano (mais de 10 000 em Portugal), com cerca de 50% de mortalidade aos 5 anos. E que essa colonoscopia deve idealmente ser realizada de forma sistemática após os 50 anos ou mais cedo se houver sintomas ou risco familiar.
O cumprimento da Constituição e o respeito pelos direitos dos cidadãos, no que respeita à saúde, não se compadece com ideologias políticas. Deve-se exigir do Estado que encontre soluções para a realização daquilo que os hospitais do SNS não têm capacidade para resolver. E não se vislumbra outra solução que não seja recorrer a estruturas fora do SNS (privados, convencionados e Misericórdias), dentro de princípios transparentes e previamente acordados, de forma a resolverem-se longas listas de espera que de outra forma jamais terão solução, e não onerando os cidadãos. Dessa maneira restarão para os Hospitais as situações que pela sua complexidade e/ou gravidade apenas aí podem ser tratadas, retirando a pressão dos números que impedem também que estas sejam atendidas em tempo útil. A saúde é o nosso principal bem e o Estado não se pode demitir de cuidar de nós de forma eficaz, principalmente dos mais desfavorecidos. Nesta matéria, a justa exigência das populações é apenas um direito de cidadania. E por parte de quem nos governa, impõe-se uma visão de justiça e de serviço público.
Nota: Artigo publicado originalmente na edição 1 do Jornal de Guimarães em Revista, em abril 2021.