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Os "Mouros lavradores" de Gaspar Estaço

Gonçalo Cruz
Opinião \ quarta-feira, fevereiro 01, 2023
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O astuto cónego Gaspar subiu à Citânia, com grande trabalho, e nada encontrou de jeito. É curioso, porque uns cem anos depois, (...) surgem-nos descrições de casas, ruas (...) e até "templos".

"Vindo eu de Braga para Guimaraens me diverti por ir ver o outeiro, a que chamaõ Citania, o qual está junto do rio Ave daquella banda de Braga, e andey por cima delle com trabalho, por ser todo semeado de pedras nativas, e de outras soltas, e naõ achey nelle vestigio algum de rua, nem os penedos alli nascidos o permittem: algumas casas houve de parede de pedra solta sem cal, e rude, que parece foraõ de Mouros lavradores, ou palheiros, mas naõ ha huma só pedra lavrada, nem fonte, nem capacidade de sitio, que havia de ter huma Cidade, que desprezava hum exercito de Romanos, porque o outeiro só para curral de gado podia servir..."

Gaspar Estaço. Várias Antiguidades de Portugal, 1625 (reedição de Luiz de Moraes, 1754, páginas 82-83).

 

Gaspar Estaço de Brito foi cónego capitular na Colegiada de Guimarães, entre o final do século XVI e a data da sua morte, em Dezembro de 1626. Dele nos deixou uma interessante resenha biográfica Domingos Leite de Castro, em 1885, que nos permite atingir a extensão da inteligência e sofisticação do eclesiástico natural de Évora, que terá passado os seus últimos anos em Guimarães, dedicado aos arquivos da Colegiada e dando passos fulcrais para documentar a história vimaranense.

O astuto cónego Gaspar subiu à Citânia, com grande trabalho, e nada encontrou de jeito. É curioso, porque uns cem anos depois, e apesar de se estar longe das explorações sarmentinas, que descobriram a maior parte, surgem-nos descrições mais ou menos detalhadas de casas, ruas, pedras decoradas, muralhas, torreões e até "templos"... A situação parece-se com o que ainda hoje algumas pessoas experimentam, que por tanto trabalho passam para circular pelas pedregosas vielas da Citânia – custa a subir e ainda mais a descer – que, a dada altura, já nada veem, nem querem ver... Porém, antes de ajuizarmos sobre o quão pesado e pouco ágil, além de falho de vista, poderia ser Gaspar Estaço, homem culto, além de viajado, convém perceber porque é que ele escreve isto.

Afirmavam então vários eruditos do século XVI, que o local de Briteiros a que chamavam Citânia, poderia ser uma antiga praça fortificada referida pelo escritor romano Valério Máximo, no século I, nos seus "Nove livros de feitos e ditos memoráveis". Escreveu o romano que uma cidade da Lusitânia, a que chama Cinginnia, ofereceu tenaz resistência ao exército de Décimo Júnio Bruto. Apenas por uma alegada semelhança do nome, esta antiga cidade foi associada por escritores quinhentistas portugueses à Citânia que conhecemos. Apresentava cada um sua versão da palavra (como Cinãnia, por exemplo), numa improvável ligação onomástica refutada por Sarmento, Hübner e outros, como nos resumiu Mário Cardozo.

No entanto, o primeiro autor a ir contra esta associação foi o nosso Gaspar Estaço que, para tanto, desvalorizou o que viu na Citânia de Briteiros, no primeiro quartel do século XVII, apresentando também o argumento de que a Citânia não ficava na província da Lusitânia, na aceção romana deste território, que ficaria do Douro para Sul. Desvalorizou, mas depois não deixou de referir as "cercas de pedra" e uma impressionante calçada, que ainda lá está, e que atribui ao engenho romano, naturalmente. Teria o olhar e o gosto acostumados aos monumentos antigos de Roma, cidade onde também viveu.

Certo é que, não sendo a nossa Citânia, a antiga e misteriosa Cinginnia, fosse onde fosse, dificilmente teria maior esplendor nas suas muralhas e torres que desafiaram Bruto, "o Galaico".

 

Ruas e quarteirões da Citânia de Briteiros

Ruas e quarteirões da Citânia de Briteiros

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