Guerreiras!
A função que se atribui ao homem e à mulher na sociedade tradicional terá as suas origens nas conceções sociais da cultura greco-romana, que Roma difundiu e que o Cristianismo consolidou, praticamente até aos dias de hoje, na Europa Ocidental. Contudo, nos contextos anteriores à Romanização, pode não ter sido assim. Recuando a um período histórico em que as nossas fontes de informação estão condicionadas pelas limitações do registo arqueológico, ou pelas informações interpretadas, matizadas ou adulteradas pelos autores clássicos, é muito difícil deslindar as características de um modelo social que sabemos diferente. De facto, as referências à mulher por parte dos autores romanos – ou gregos em período romano – refletem mais as suas próprias considerações do que as características dos povos "bárbaros" que descreviam. Daí as personagens femininas terem por vezes um papel que, embora central, tinha um carácter excecional nas narrativas clássicas, de Dido a Cleópatra e a Boadiceia.
Contudo, Apiano de Alexandria, um autor que escreveu no século II, ao referir-se às guerras de Roma no Noroeste da Península, diz-nos que, entre os brácaros, as mulheres combatiam e pereciam ao lado dos homens, sem virar as costas e sem lamentações *. Revelou-nos, assim, um pormenor que marca um aspeto diferenciador ao panorama das "guerras masculinas" da Antiguidade – à parte as míticas e figuradas Amazonas. Isto a propósito de uma violenta batalha travada entre Décimo Júnio Bruto e os Brácaros, após o episódio mítico da travessia do "rio do esquecimento", provavelmente o Lima.
É verdade que Apiano poderia estar a descrever uma situação de particular aflição, que terá levado as mulheres brácaras a pegarem em armas, em desespero de causa. Ou pode até ter feito esta referência por uma questão de estilo de escrita, dramatizando a resistência heroica ou a força esmagadora dos filhos da Loba.
Num estudo recente, as informações reunidas por Raquel Liceras-Garrido revelam-nos como, num diferente contexto geográfico (o norte da Meseta Ibérica), mas no mesmo período cronológico (o final da Idade do Ferro) a identificação de armas em sepultamentos, tradicionalmente identificados como sepulturas de guerreiros, se verifica em túmulos tanto de homens como de mulheres. Embora o estudo em questão pareça entrar em contradição, ao começar por rejeitar uma visão tradicionalista, mas concluindo por atribuir à mulher funções estritamente domésticas, questiona a forma como olhamos para o passado. Talvez o papel do homem e da mulher tenham sido muito diferentes do que vieram a ser em contextos mais recentes, quiçá até mais equilibrado.
Entretanto, as representações de guerreiros desta época continuam a parecer-nos masculinas, nomeadamente as que mostram claramente uma barba. Mas existem "cabeças avulsas" de eventuais estátuas inteiras, cujo género não é tão facilmente reconhecível.
* Secção 71, da obra de Apiano, Guerras na Hispania. Texto integral (em inglês) disponível em https://www.livius.org/sources/content/appian/appian-the-spanish-wars