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Os “papeis pintados” de sustentação autárquica

Esser Jorge Silva
Opinião \ sexta-feira, fevereiro 10, 2023
© Direitos reservados
Na reação do poder político é percetível que a cidade não pertence aos cidadãos mas sim a quem nela decide. A seu ver, se quem manda não reconhece o problema, é porque não há problema nenhum.”

É mesmo um alerta à moda de Hamlet de William Shakespeare: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”. Quando uma classe neutra como os comerciantes, que tem na ausência de conflito o seu maior crédito, entra em rebelião pública com métodos de comunicação tão naïfs, há todos os motivos para escutar. Percebe-se, na forma e no conteúdo, que há desespero. E o desespero tem a ver com a sobrevivência. São cidadãos a espernear porque há coisa grave. Só não ocorre na Dinamarca, mas em Guimarães.

Ao invés, a resposta de Paulo Lopes Silva – uma das mais bem preparadas vozes do Partido Socialista –, segundo a qual a Associação de Comerciantes de Rua “não representa todos os comerciantes”, querendo com tal significar que quem representa são os eleitos, é demonstrativo da divisão (que é uma dupla visão) entre o político e a realidade. A cristalização subjacente elucida o quanto ganha a sociedade vimaranense quando se associa para obrigar o poder político a justificar o injustificável. E, last but not the least, mostra o resultado negativo da aniquilação associativa há muito em curso em Guimarães, cujo objetivo de silenciar a sociedade civil demonstra agora as suas consequências.

Independentemente de se concordar com as suas posições, tratando-se do grupo socioprofissional mais importante na produção de sentido urbano, mais do que escutá-los, devia-se integrá-los nas decisões. Infelizmente, na reação do poder político é percetível que a cidade não pertence aos cidadãos, mas sim a quem nela decide. A seu ver, ao jeito da verdade de La Palisse, se quem manda não reconhece o problema que lhe é colocado, é porque não há problema nenhum. Mas há. E muitos. E graves.

Para conhecer problemas é preciso estudá-los em profundidade, sem medo das conclusões. Porém, estudar para compreender e decidir em sequência é coisa que não abona em Guimarães. A intuição parece ser a melhor amiga do processo decisório. Por exemplo, uma pequena volta pela cidade nos dias festivos de dezembro mostra a ausência de dinâmica em contraste com outras cidades vizinhas. É absolutamente notório. São muitos os espaços devolutos. Haverá correlação entre uma e outra coisa? A hipótese de estudo é a de que as rendas dos edifícios pesam tanto ao ponto de não permitirem viabilizar negócios para as carteiras locais. Dez anos depois, a Zara Kids foi-se da Rua de Santo António. Dados exploratórios dizem que, recentemente, quando a Câmara quis arrendar algumas lojas no Centro Comercial Santo António para aí instalar uma Loja do Cidadão, percebeu que, para alguns proprietários, mais vale manter lojas fechadas do que arrendá-las. Uma hipótese e um dado exploratório não permitem conclusões. Falta o aprofundamento.

Todavia, ir ao fundo, não é coisa da terra. Já o superficial convoca o interesse da autarquia. Exemplo: aqui e ali vão surgindo umas empresas de “estudos” a entregarem questionários e outros pedidos aos lojistas. Percebe-se a intenção. Cria-se a impressão de que o poder está preocupado. Os comerciantes fazem o seu papel e preenchem o questionário, alguns com inenarráveis erros na sua conceção. E colocam-nos num canto da loja à espera de serem recolhidos. Eis todavia que, por milagre, os estudos aparecem redigidos (ou nem aparecem) sem que os questionários tenham sido levantados. A pergunta óbvia é: mas de onde vieram os dados dos estudos?

Por estes dias veio-me à memória uma intervenção passada de Monteiro de Castro, então vereador, sobre a sua noção de estudo antropológico: “A pessoa que devia estar a exaltar tudo o que de bom têm as Nicolinas”, afirmava a propósito de um estudo do antropólogo Jean-Yves cujas conclusões não iam de acordo com a ideia-feita, género “está no papo”, segundo a qual as Festas Nicolinas poderiam ser classificadas como Património Imaterial da Humanidade. Monteiro de Castro apenas disse o que muitos pensaram, mas não quiseram expressar. Esconde-se aí uma certa ideia de “estudo” ou “relatório” que, nas autarquias, serve habitualmente para uma decisão já tomada, mas carente de sustentação. Esses documentos são, em regra, à medida do freguês. Tal dinheirinho, tal trabalhinho, tal “conclusãosinha”, sempre a propósito. Não passam de “papeis pintados”.

A lembrança convocou-me os feitos de uma tal multinacional, a Bloom Consulting, autora de um ignóbil e mais do que simplório documento apresentado em 2019 que pretendia ser (e é!) a estratégia do Turismo vimaranense até 2029. Feito de “papel pintado” à maneira dos incautos, e vendido à Câmara Municipal de Guimarães por 100 mil euros, ensina as linhas mestras da identidade para conquistar turistas assente, veja-se lá, na “garra vimaranense”. Ler esse panfleto, anunciado como estratégia para uma cidade com os pergaminhos de Guimarães, é, ainda hoje, um insulto à inteligência. Persiste assim comprovado o nivelamento por baixo no ato de pensar autárquico vimaranense. Os “papeis pintados” assim o dizem.

[ndr] Artigo originalmente publicado na edição de janeiro do Jornal de Guimarães. 

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