Saber de onde partimos...
Seguramente não consensual, muito menos unânime, a paisagem é tudo aquilo que construímos e transformamos. É, pois, produto e consequência culturais que reflectem a condição humana evolutiva ao longo do tempo.
O território físico é, por excelência, o palco dessa paisagem e onde se projecta, quer as grandes conquistas humanas – ora na construção e preservação do património, ora na salvaguarda e rentabilização dos recursos humanos – quer nos seus actos, dir-se-á, menos conseguidos ou desviantes.
Sem pátria nem tempo, a paisagem é um resultado global que não deixa de se influenciar e traduzir as especificidades locais.
Neste âmbito, e à escala nacional, o vale do Ave constitui-se como uma unidade fortemente produtora de uma realidade tão singular quanto, para muito, irrepetível.
Ao vale estava reservada a prática agrícola, às encostas altas a actividade florestal, a meio da encosta, a urbanização feita linear e de forte integração na morfologia do território. Em complemento, a actividade industrial procurava a água para se desenvolver e afirmar, assumindo um impacto social local muito acentuado.
A este processo associava-se um forte sentido de pertença ao lugar que habitavam – “a terra”, “a nossa terra” – e um carácter de permanência familiar extensível no tempo e no espaço.
A dinâmica subjacente a este processo, com algumas variantes de velocidade e intensidade, permaneceu estável até aos anos oitenta, década que representa, de forma efectiva, a primeira explosão construtiva e imobiliária no país pós Abril 74.
Após a experiência de planeamento centrada na cidade, chega o plano director municipal, figura de planeamento construída para ser elemento referenciador e orientador da gestão territorial e que se revela a primeira experiência de planeamento extensível a todo o território, introduzindo, no mesmo, um grau de abstracção e regra que a lógica e a dinâmica de apropriação do território, até não muito tempo atrás dominantes, não conheciam.
Fortemente dominado por uma carga funcionalista do solo e por um conjunto de regras abstractas e generalizáveis a todo o território (apesar de todas as suas especificidades), em 25 anos, o plano director municipal foi, “para o bem e para o mal”, a grande condicionante da gestão e ocupação territorial municipal.
Neste mesmo período temporal, a condição humana do país alterou-se substancialmente, beneficiando de um incremento de condições tecnológicas, crédito bancário, regimes laborais, acesso a infraestruturas e equipamentos, mobilidade e acessibilidade que, profundamente, modificaram hábitos de vida e introduziram a capacidade de concretizar sonhos que, até pouco antes, eram tidos como tal: sonhos.
Esta realidade (necessariamente muito sintetizada), tão incontornável quanto complexa, produziu modificações no modo de apropriação do território e, depois nos seus resultados, que hoje marcam-no de forma indelével: a “terra”, outrora a “nossa terra”, que se transmitia de geração em geração, permanecendo na família, transformou-se em solo que agora se negoceia para construir e vender; o sentido de pertença e a casa agora transfiguram-se para o tempo “que demora a chegar” e a “residência”. Agora, o carácter local e o enraizamento da construção no território e “naquela paisagem” dão lugar a requisitos técnicos de conforto e opções de projecto do autor… E agora, a lógica de ocupação associada a hábitos e modos de vida substituem-se por um zonamento funcional que fixa “onde e como se pode construir”.
Neste processo de transformação territorial, e por consequência, da paisagem, geraram-se desafios e fragilidades a nível da impermeabilização de solo, mobilidade, habitação, actividade económica (entre outros) que, hoje, se expõem e se exacerbam, provavelmente, como nunca, recomendando não esquecer a génese de “tanta coisa”. Uma das razões de sucesso de um caminho percorrido é saber de onde partimos…