Variações em dor menor
Foi uma campanha muito pouco alegre, sem mistérios na estrada da Penha, assim diria Eça e Ramalho. De todo em todo esperava mais, no sentido de melhor, embora soubesse que os apelos de soluções imediatas, ao jeito do homem do café armado de Super Bock em punho está na moda. Este tempo em que se mistura o falso com o verdadeiro, o achismo com a ciência, o saloio com o civilizado, a superfície com a profundidade, a solução com a artifício, a mensagem com o mensageiro, o imediato com o ultrapassado, afasta-me, a todo o tempo, para um recolhimento de quem já não se entende com este mundo. Já nem um gracioso sound bite se escuta. Ao invés, rápidas imagens truncadas, desligadas do seu contexto, pululam por aí como cogumelos.
Por decência evito dedicar-me a pensar sobre o efeito do excremento na vida das pessoas. Portanto há pouco para dizer sobre André Ventura e a elite do seu partido, o Chega, a que se associaram todos os que, estando descontentes, pensam ali encontrar solução para as suas vidas. Contas básicas indicam que se as políticas do Chega fossem aplicadas, não haveria carga de impostos para tanta despesa pública. Nem o Partido Comunista se atreveu a ir tão longe. O seu líder, André Ventura, que escreveu num doutoramento o exato oposto do que agora apregoa, é de tal modo aldrabão ao ponto de faz corar de vergonha qualquer refinado aldrabão.
É certo que a política portuguesa oferece epifenómenos, tal como foi o caso do defunto PRD que, em meados de 1980, vinha “regenerar” Portugal. O PRD morreu nas suas próprias contradições, com os seus votantes a migrarem para a maioria absoluta do PSD de Cavaco Silva em 1987. Isto é, as idiossincrasias da política portuguesa regeraram o PRD. E o mesmo ocorrerá, certamente, com o partido Chega. Escrevendo no dia de reflexão e correndo o risco de errar, parece não haver dúvidas que nos próximos anos haverá um governo de centro-direita em Portugal que apenas fará mudar figuras num sistema montado para servir caciques, desempregados da política e interesses empresariais dos esfomeados de fundos europeus. Esse campo aberto de guloseimas atrairá ao PSD o que geralmente a ele se agarra como lapas, isto é, todo aquele séquito que agora se diz descontente e habita o Chega. É só esperar e ver…
E a pergunta que fica é a mais óbvia: qual a razão por que o Partido Socialista perdeu estas eleições? A este escrevedor a razão parece ser simples: o PS deixou de existir estruturado em fundamentos da política para passar a assentar a sua existência apenas no domínio da economia. Enquanto no caso do PSD percebe-se que a sua identidade política assenta nos negócios e nas oportunidades de negócios – veja-se o problema que mais cedo ou mais tarde obrigará Montenegro a justificar as suas relações, de ordem económica, com a Câmara de Espinho –, o Partido Socialista, por tradição, assentava a sua ação política num campo holístico do devir humano. Interessa-lhe o progresso, o bem comum, a melhoria estrutural da educação, a procura da sociedade justa, a felicidade geral como fim supremo.
Pois a campanha de Pedro Nuno Santos foi tão má, tão despossuída, tão fútil, ao ponto de ser penoso o ver debitar arrazoados de palavras esperando com isso estar a produzir um discurso político. Alguém notou que cantava quando discursava. Pois até aí se percebeu que, como dizia um amigo, Pedro Nuno Santos é muito bom a levantar plateias já convencidas. Do resto, dizer “vota em nós porque somos a esquerda e a esquerda é que é, olé, olé…” é de tal pobreza intelectual ao ponto de fazer da esquerda um campo de ignorantes que apenas quer chegar ao poder, recolher impostos para um grupo de elite viver bem, assim parecendo decidir quando perante um mar de dinheiro. Pois, sem o PS se aperceber, fazendo de conta que não era problema seu, foi este tipo de nivelamento do pensamento político que deu espaço ao aparecimento do Chega.
Pela primeira vez umas eleições foram realizadas por políticos totalmente nascidos em democracia. Montenegro tinha um ano em 1974, Pedro Nuno Santos nasceu em 1977, Ventura em 1983, Mariana Mortágua em 1986, Paulo Raimundo em 1976. São deste tempo e não do da outra senhora. E, nestes tempos fragmentados, com meios de comunicação vocacionados para a alienação, dominados pela aceleração produtora de ansiedade, com geografias ricas desligadas das regiões pobres, exige-se muito mais do que a superficialidade e formas passadistas de comunicar como o que se assistiu. Não só se exige à política maior capacidade conceptual da e para a sociedade portuguesa, como se exige mais dos atores políticos cuja qualidade, salvo melhor opinião e argumentos, pensa que basta ocupar o lugar cimeiro do partido para, imediatamente, se dar a mágica do dom da graça, ou carisma, como explicou Max Weber. Há mesmo muito a rever.