A Inexistente Inexorabilidade do Progresso
A nossa Constituição procura assegurar logo no seu início que a soberania popular, a dignidade humana, o respeito pela lei e a democracia estão codificadas para lá de qualquer dúvida. Esta priorização de conceitos foi uma escolha consciente, derivada da nossa história e da quebra com o regime fascista que antecedeu a atual República.
O objetivo é simples: não podemos retroceder para lá destes ganhos civilizacionais, que muito nos custaram a obter. Observamos recentemente o maior exemplo moderno de retrocesso legal e social numa democracia ocidental, oriundo dos Estados Unidos da América. O Supremo Tribunal norte-americano pronunciou-se pela reversão da decisão do caso “Roe vs. Wade”, que protegia há décadas o direito ao aborto. A maioria conservadora do Tribunal considerou que a Constituição americana não protegia o aborto, sendo papel de cada Estado regular o acesso à interrupção voluntária da gravidez. Com a fragmentação política nos EUA e a ausência de legislação federal, o aborto passou a ser efetivamente proibido em metade do país, colocando em sério risco a saúde, vida e liberdade de milhões de mulheres.
Deste monumental evento jurídico temos de tirar três notas essenciais. Em primeiro lugar, os abortos continuarão a existir, sendo que tudo o que este retrocesso colocou em causa foi a segurança de quem os procura e a liberdade de acesso das classes com menos rendimentos, incapazes de viajar para estados onde este é legal.
Os argumentos a favor da proibição orientam-nos para a segunda nota. A proibição do aborto não pode ser racionalmente fundamentada em preocupação pela vida da mulher, da criança ou mesmo pela qualidade do procedimento. Será possível estar preocupado com mulheres retirando-lhes o direito de escolher o que fazer com os seus corpos, ou com as crianças que poderão surgir obrigando-as a vir ao mundo sem qualquer apoio a partir do momento em que são expelidas dos corpos das suas mães? Será um pequeno aglomerado indiferenciado de células digno de mais proteção legal do que o ser humano que o carrega, ou do que o ser humano que poderá dele advir passado nove meses? Se o direito à vida se esgota quando nascemos, se uma mulher não pode decidir se quer ter filhos mesmo em casos de abuso ou violação, se nos preocupamos em proibir procedimentos médicos seguros, mas não a compra de armas de fogo, será mesmo a vida que está em causa?
Chamemos as coisas pelos nomes adequados: a proibição do aborto não passa de um exercício de poder moralista, misógino, bárbaro e fundamentalista sobre o direito de uma mulher dispor livremente sobre o seu corpo, algo que deveria ser hoje inquestionado enquanto direito fundamental. Elimine-se qualquer dúvida da necessidade do movimento feminista! A ausência de proteção legal explícita deste direito custará muito caro a todos os americanos, incluindo aos conservadores que consideram uma vitória a limitação dos direitos fundamentais de metade da sua população.
A terceira nota que devemos retirar é a dificuldade da separação e interdependência de poderes neste que é um ataque claro e direito de um conjunto de juízes ultraconservadores contra uma orientação política com que discordam. A sucessão de decisões do Tribunal, uma das quais limita a capacidade da Agência de Proteção Ambiental americana de combater a utilização de combustíveis fósseis, demonstra os perigos de acreditar que a história é inexorável e que nos encontramos no lado certo.
Não existem direitos que não possam ser retirados ou decisões que não possam ser revogadas. Não existe uma inevitabilidade histórica de justiça e igualdade, sendo necessário procurá-las todos os dias, em todas as suas formas. Apenas assim podemos contrariar as forças que ativamente espreitam por entre as estreitas frinchas do sistema, na esperança de fazer voltar atrás o relógio do progresso.