Espuma dos dias
Nunca como neste aniversário de Abril esteve o país tão crispado. Os cinquenta anos da Revolução encontram um país em estado de tensão, com um governo e uma maioria de direita desconfortáveis com a celebração das conquistas de uma transição democrática e social que muitos dos seus protagonistas até recentemente fingiam apreciar. Não mais são as liberdades de Abril consensuais, e não mais é o progresso da nação um desígnio nacional.
No Portugal de hoje, onde mortos-vivos políticos se promovem lançando virulentos pasquins e onde a sobrevivência do executivo está dependente de fascizóides e de oposições caridosas, a política é mais do que nunca um fator de discórdia, não de união. Onde falhamos, para que apenas cinquenta anos após a ditadura sejamos incapazes de nos lembrar dos seus maiores ensinamentos? Como podemos recuperar a civilidade, quando a verdade pouco importa aos frustrados e o serviço público pouco inspira aos cidadãos? Com um continuo decréscimo da qualidade dos nossos eleitos e um contínuo crescimento do descontentamento com o sistema, entramos na primavera esperando acima de tudo instabilidade. É triste que este seja o nosso fado, tal como o é que não existam respostas fáceis para curar esta maleita autoinfligida. Este não é, porém, um problema exclusivamente português, sendo antes uma pandemia contra a qual não estamos certamente imunizados, contrariamente ao que muitos especulavam.
Para lá das nossas fronteiras, o mundo continua uma trajetória descendente, onde o autoritarismo ganha força e a democracia perde popularidade. Desde a corajosa mas precária resistência ucraniana, ao inumano e crescentemente regional conflito israelita, o recurso à violência de larga escala como ferramenta de política externa cresce. A ordem internacional que nos resguardou até hoje está em decaimento ativo, sem que seja dado qualquer destaque a tal tragédia no discurso político e mediático nacional.
Necessitamos de trazer o internacional para o local, forçando um país isolado nos seus dramas internos a enfrentar o seu papel na Europa e no mundo. Necessitamos de explicar à população que muito daquilo que os afeta não é decidido em Lisboa, mas antes em Washington, Moscovo, Bruxelas, Pequim e até Teerão. Um povo que navegou o mundo não se pode julgar seguro e confortável no seu quintal, e algumas batalhas não podem ser ganhas sem aliados, uma lição que até os mais violentos nacionalistas há muito aprenderam.
Chegados até aqui, urge aceitar o convite e entrar na batalha pelas mentes e corações dos portugueses. Cada um daqueles que reconhece o progresso do último meio século tem, pois, o dever de fazer o seu melhor para o defender, qualquer que seja a sua bolha de influência. O recurso a linguagem bélica, tipicamente inflacionada, demonstra a minha preocupação com a situação. A política não é questão de conforto individual, de quanto dinheiro temos ao final do mês ou de qual o político por quem temos mais simpatia: temos de falar de política de forma madura e adulta, evitando infantilizar ou afagar o eleitorado e debatendo a visão que temos para a segunda metade de século desta nossa República. Mais do que nunca, ousemos resistir às exigências da espuma dos dias, enfrentando o que aí vem com um sorriso nos lábios e a confiança num futuro melhor, iluminado, agora e sempre, pela memória de Abril.