“O Deserto do Digital”
A recente apresentação da visão e candidatura de Guimarães para os Bairros Comerciais Digitais, programa do Governo para a digitalização do comércio de rua das cidades, coloca em questão o tipo de cidade que queremos. A declaração de que “o digital impulsiona a prosperidade” nas cidades, lançada pelo Secretário de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa, soa mais a um desejo do que a uma observação sustentada com base histórica. Um dos maiores desafios da sociedade moderna é o perigo da digitalização excessiva, uma consequência do desejo de resolver todos os problemas através de ferramentas tecnológicas. Estas ferramentas, quais instrumentos místicos, são compreendidas apenas por uns poucos escolhidos que partilham dos seus segredos, permitindo assim sonhar alcançar mais do que até então seria possível. Este projeto não se apresenta como nada de particularmente dramático, sendo essencialmente um método de aumento de informação e não comportando sacrifícios de maior no altar do digital. Mas será nas caixas negras do binário imaginado que a salvação das nossas cidades se encontra?
Embora as tecnologias digitais sejam hoje prevalentes, a razão da sua utilidade e segurança em certos contextos é mais fruto de especulação do que estatística. Os riscos de segurança, abuso de privacidade e criação de um ambiente de controlo do cidadão através de sistemas digitais instalados nas cidades são tão reais como a elevadíssima quantidade de literatura distópica sobre a matéria. A principal questão é a total falta de consentimento para a recolha e desenvolvimento de dados pessoais, bem para a sua comercialização. No que toca a redes sociais, por exemplo, este foi um risco que assumimos sem pestanejar: o cliente é ele próprio o produto, desumanizando o cidadão como fábrica do seu próprio comportamento. No caso em apreço, parece-me pouco provável que isso venha a acontecer, mas também não me parece razoável considerar que a digitalização do comércio local não leve à sua morte, quando foi precisamente a digitalização do comércio que o concentrou em centros comerciais e nas titânicas lojas digitais internacionais.
Os riscos do abuso do digital nas nossas cidades são significativos, nem que seja por divergirem a atenção das matérias essenciais que o digital não pode efetivamente resolver. A crise da habitação, a dificuldade de fixação de jovens, a destruição da indústria e produção locais face à satisfação de necessidades das massas turísticas e a ausência de possibilidades dos cidadãos para fazer uso dos equipamentos que as cidades possuem são todos desafios prementes e que nenhuma aplicação ou ecrã digital poderão fazer frente. Sendo essencialmente positiva a instalação no espaço público de equipamentos com informações sobre comércio, estacionamento, mobilidade e agenda cultural, não deveremos cair na tentação de achar que será unicamente através do progresso tecnológico que o progresso social pode ser atingido. Essencialmente, não podemos deixar que um qualquer fetichismo tecnológico nos faça esquecer da importância da preservação da dimensão inerentemente analógica da dinâmica citadina. Somos uma cidade de história densa e longa, afinal, e não podemos permitir que a tentação em ser mais brilhantes e mais progressistas nos transforme num museu a céu aberto, informativo para os visitantes, mas árido para os habitantes. Estamos já no limiar do deserto do digital, tendo preferido o conforto à segurança e a facilidade à privacidade, e é por isso essencial impedir que na procura de fazer o ótimo, falhemos a conseguir fazer o bem.