“O Intangível Espírito da Lei”
A Lei importa, e importa respeitar a Lei. Não existe Democracia sem Estado de Direito, apesar de o inverso poder ser verdade. Esta premissa, que aparenta ser básica devido ao seu lugar de destaque no nosso ideário republicano, é consistentemente posta em causa um pouco por todo o mundo. Podendo ser utilizada para branquear um regime opressivo, mas sendo essencial para assegurar liberdade em qualquer sistema, a Lei apresenta-se como um verdadeiro milagre nascido da imaginação humana. O facto de termos conseguido concordar num conjunto de valores que consideramos importantes, definindo uma miríade de normas que nos permitem assegurar a sua defesa e estabelecido mecanismos para assegurar que tais normas são cumpridas, não deixa de me maravilhar todos os dias. O que é a Lei, senão uma arbitrariedade tornada verdadeira e natural pela força da união das vontades humanas? Sem Lei não existe sociedade organizada, não existe tolerância, não existe diferença. A lei do mais forte não passa da selvajaria natural que advém da ausência de qualquer mecanismo que procure defender os valores da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Sem Lei, estamos à mercê daqueles que têm suficiente poder para fazer valer a sua vontade acima da nossa, através das armas, do dinheiro ou do ruído. A existência de uma Lei justa, que assegure os direitos que fomos acumulando após sucessivas lutas e vitórias e procure descobrir direitos novos, é um fim último da Democracia, sendo a Lei injusta uma paródia do seu propósito, mero instrumento rombo do vilão e do autocrata. Com direitos vêm deveres, e assim se faz ordem do caos. É, portanto, verdadeiramente perigoso para o nosso sistema democrático quando as partes de um conflito eleitoral não aceitam o seu resultado por este não ir de encontro ao seu interesse. Esta infantilização da democracia, na qual berramos e ignoramos aquilo que não queremos ouvir, apenas favorece aqueles que procuram explorar as nossas diferenças em benefício próprio. Viver em democracia implica honrar o resultado da expressão da vontade do povo, algo que assegura a legitimidade de governar do vencedor, mantendo a legitimidade da posição do derrotado. A partir do momento em que fazemos uso das ferramentas da Democracia para a enfraquecer, em que líderes como Trump ou Bolsonaro se recusam a assumir a derrota e criam realidade alternativas para os seus apoiantes, então deixamos de lado a Lei e o seu espírito, intangível, mas profundamente impactante. Quando líderes se recusam a assumir resultados e utilizam a Lei ou qualquer outra ferramenta para perverter resultados eleitorais, não são os seus adversários que perdem, mas antes todos nós. Pois uma das maravilhas da Democracia é o facto de que passado o período do mandato, temos novamente a oportunidade de nos expressarmos e decidirmos, com base nos factos, qual a melhor opção. Mas a ideia de “factos alternativos”, ou antes mentiras, não é aceitável, pois assim é impossível analisar as consequências das políticas, justamente quando tratamos a política como se de uma questão de fé se tratasse. Narrativas nas quais a vontade popular não é honrada apenas destroem a possibilidade de fazer valer essa vontade. Democracias morrem quando os seus povos se deixam levar pela ilusão de que não é importante respeitar a diferença, e, assim infantilizados, chamam a si uma figura de autoridade que enfrente por eles as dificuldades do mundo real. Sejamos adultos, por amor de Deus, e deixemos Deus nas igrejas, bem longe dos nossos boletins de voto. Apenas assim conseguiremos derrotar os monstros que nós mesmos criamos, tal como os nossos irmãos brasileiros recentemente demonstraram ser possível.