O Rei, o Reino e a União
Maio é o mês em que a União Europeia celebra a sua fundação e em que o Reino Unido celebra a coroação do seu mais recente monarca. Estas duas celebrações, a uns meros dias de distância uma da outra, consistem essencialmente em megaoperações mediáticas de reafirmação dos respetivos projetos políticos e dizem-nos muito sobre o estado das coisas em cada lado do Canal. A escolha do que celebrar, e de como o fazer, é inerentemente política, como bem sabem aqueles que insistem na relativização do 25 de Abril face a outras datas, por exemplo.
A coroação de Carlos III, o homem que esperou toda uma vida para ser rei, foi repleta de pompa e circunstância, contando com paradas militares grandiosas, multidões entusiasmadas e declarações de fidelidade. O investimento neste evento, financeiro, político e até emocional, demonstra a necessidade prática que o Reino Unido tem de um momento para respirar entre pântanos de tristeza. A pressão pela participação da população naquilo que é essencialmente o maior espetáculo de privilégio social do mundo e a repressão meticulosamente coordenada de protesto republicano demonstram que o próprio Governo britânico percebe que a monarquia é ainda parte substantiva da cola que mantém o seu Reino unido. Tal como a existência da Câmara dos Lordes, essa paradoxal e hereditária câmara parlamentar, a subsistência de um Chefe de Estado não eleito, cujo trabalho consiste em representar teatralmente um baluarte dourado e inamovível, pode ter já findado a sua utilidade.
O populismo britânico sempre fez uso da ressaca imperial do seu país, que nunca se conseguiu coadunar com o seu mais reduzido papel na história moderna e com a reorganização geopolítica pós-colonial. O argumento de que a monarquia assegura a proteção da unidade nacional, permitindo que a Grã-Bretanha não se desfaça, pode ter um fundo de verdade, mas levanta a questão do preço da sua manutenção. Se tirarmos ao Reino Unido as suas tradições nobiliárquicas e a vastidão da sua influência cultural, que resta para além de um povo que cada dia é mais pobre, mais isolado e mais iludido quanto à sua relevância externa? Não será toda esta bela festa uma barreira que impede os britânicos de assumirem as suas dificuldades e de discutirem uma visão de futuro que não dependa do saudosismo do passado?
O Brexit foi, claro, o principal sucesso deste populismo de marca inglesa. A ideia de que a UE, essa criação franco-alemã, poderia ser não apenas uma conveniência, mas antes uma parte essencial do seu projeto político, nunca foi fácil de vender a um público intoxicado do medo irracional de imigrantes e de abusadores do Estado Social. A celebração do Dia da Europa tem, portanto, uma importância não apenas simbólica para uma União que se vê cada vez mais repleta de adversários. Estando mais coesa do que no passado, a UE enfrenta em breve a mais importante eleição da sua história, em que uma fação de extrema-direita numerosa poderá irromper pelo Parlamento Europeu, e em que a participação popular determinará a força do argumento de maior incorporação europeia daqui para a frente.
Não é possível a defesa do nosso modelo de democracia ocidental sem coordenação entre as nações europeias, mas essa coordenação será impossível se os cidadãos dos diferentes Estados-Membros não tiverem consciência da relevância que a UE tem nas suas vidas. A celebração tem assim o objetivo principal de relembrar a razão de ser da UE e a sua missão para o futuro: manter a paz no continente europeu e assegurar a não repetição das tragédias do passado século. Esta é uma missão particularmente relevante face ao crescente extremismo no continente, fantasma de traumas antigos. Será, porém, possível passar esta mensagem a pessoas que ensinamos a serem consumidores e talvez trabalhadores, mas nunca cidadãos?
Se estas celebrações ajudarão a manter vivos os projetos que lhes dão corpo, ainda está por ver, mas não há dúvida que o Reino e a União precisarão de muito trabalhar para defender os seus interesses. Entretanto, resta-nos desejar longa vida ao Rei, e sonhar com um momento em que se possa aclamar a República em Londres sem se ser detido pelas autoridades.