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Seja feita a Justiça dos Homens

André Teixeira
Sociedade \ segunda-feira, março 20, 2023
© Direitos reservados
Passados 10 anos desde a ascensão do Papa mais humano da modernidade, a resposta dos representantes nacionais para uma crise de fé, moral e direito é fechar a porta e esperar que a tempestade passe.

Já muito tem vindo a ser dito sobre a absurdidade a que a Igreja Católica portuguesa nos tem sujeitado, mas a situação é tal que não posso evitar adicionar algumas palavras à substancial pilha de carateres já gastos no assunto. A recusa dos bispos portugueses em lidar com a fortemente documentada sequência de abusos sexuais por sacerdotes demonstra que esta augusta instituição nunca assumiu verdadeiramente as reformas que se afiguravam necessárias, pelo menos no nosso país.

Não deixa de ser curioso que esta terrível demonstração de conservadorismo por parte da Igreja portuguesa surja num momento onde o seu Pontífice dificilmente poderia ser mais progressista. Passados dez anos desde a ascensão do Papa mais humano da modernidade, a resposta dos seus representantes nacionais para uma crise de fé, moral e direito é fechar a porta e esperar que a tempestade passe. Tal resultado seria, claramente, o mais vil dos insultos para as vítimas destes abusos, passando um certificado de incompetência à sociedade civil e dando um sinal claro de que o clero se encontra acima das leis dos homens.

A realidade é que uma comissão independente, cujos membros possuem comprovada integridade e cujo trabalho está acima de dúvida, descobriu após uma extensa investigação que ao longo de várias décadas o abuso, assédio e violação de crianças por padres em Portugal foi comum e numeroso. Este abuso provou-se tão numeroso e alargado que a possibilidade de não ter sido institucionalmente ignorado, para não dizer encoberto, é essencialmente nula. A Igreja sabia, e não quis saber. Não deve, portanto, ser surpresa para ninguém que continue com a mesma atitude, mesmo após os casos verem a luz do dia.

As tentativas de proteger os potenciais abusadores por detrás da presunção de inocência e dos ditames da lei canónica não passam de formas de deitar areia para os olhos de quem não os conhece. Ninguém está a sugerir a condenação sem julgamento destes párocos, que deverão ser submetidos ao jugo da Lei com todas as proteções civis e penais a que têm direito. Porém, o afastamento dos suspeitos de pedofilia das suas funções religiosas não é apenas um imperativo dos cânones da própria Igreja, mas também uma necessidade prática para proteger as comunidades onde estes se inserem e a confiança destas na Igreja e na Justiça. Recusando-se a cooperar, a Igreja demonstra uma séria cegueira ideológica, para além de uma inumana falta de empatia e sensibilidade.

Com uma forte impregnação social, cultural e política, especialmente no Norte, o nosso país não se consegue definir ou compreender sem a integração da sua herança católica. Na era da ditadura corporativista, a Igreja era um dos pilares do regime, agradecendo as benesses que este lhe trazia sem se deixar incomodar com os abusos que este perpetrava. O Estado Português é, porém, laico e republicano, não devendo abrir quaisquer exceções de simpatia ou amizade para com a sua principal instituição religiosa. Os representantes do Deus cristão em Portugal não pagam impostos, as suas fundações e instituições sociais têm exceções legais discriminadas, o seu lobbying político é abertamente aceite e o seu encontro de jovens é fortemente subsidiado por fundos públicos.

A liberdade religiosa é essencial numa sociedade democrática, mas o posicionamento institucional da Igreja acarreta deveres para além de direitos. Seria de supor que o combate a um crime tão universalmente condenado fosse simples, se não indolor, e a sua recusa em cooperar não deverá ser esquecida. Não apenas por respeito às vítimas, que merecem desculpas e compensação adequada, mas também como sinal de que não deixaremos esta tragédia repetir-se. Este é um pecado humano, de todo um país que silenciou os gritos dos mais vulneráveis. Seja feita a Justiça dos Homens, se não for feita a divina.

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