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A propósito da Feira dos 27

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ segunda-feira, fevereiro 26, 2024
© Direitos reservados
Com efeito, a efeméride alia a devoção religiosa à vertente profana, que tem como foco a feira e bênção do gado bovino e atividades lúdicas diversas. Este ano a comemoração não foge à regra.

A 27 de Fevereiro, S. Torcato está de festa!

Ora, esta festividade comemorativa, denominada Feira dos 27, tem a ver com o dia do martírio do santo e os dos seus 27 acompanhantes, que atualmente também coincide com a data de elevação do santuário à dignidade de basílica menor. Efetivamente, após a cerimónia oficial ocorrida em 27 de Fevereiro de 2020, na sequência de decisão do papa Francisco de Setembro de 2019, o santuário que o arquiteto Marques da Silva acompanhou, e que seria inaugurado em 1946, teve direito a uma promoção, após a conclusão definitiva das obras, que se arrastariam por longos anos. 

 Ora, a festa agora denominada Feira dos 27 teria supostamente sido fixada desde1693, por certo em moldes diferentes doa atuais. Com efeito, a efeméride alia a devoção religiosa à vertente profana, que tem como foco a feira e bênção do gado bovino e atividades lúdicas diversas. Este ano a comemoração não foge à regra, com a particularidade de se celebrar também 750 anos da primeira referência escrita à existência da Irmandade e 850 anos da Carta do Couto, documento que define o território de S. Torcato, nessa época. Ademais, irá contar com a ilustre presença de Augusto Santos Silva, Presidente da Assembleia da República, cuja tese de doutoramento se baseou em S. Torcato.

Quanto ao programa específico, que abre no sábado com a conferência “Olhares sobre S. Torcato – o culto” e prossegue no domingo com um concerto comemorativo na Basílica de S. Torcato (15,30 horas), a cargo do Quinteto de Metais da Sociedade Musical de Pevidém, que visa  evocar a elevação do santuário à categoria de basílica, tem como iniciativas fundamentais a terça-feira, 27 de Fevereiro.  Deste modo, estão previstas, da parte da manhã uma missa solene (10 horas), seguida do desfile, bênção do gado e concurso pecuário, com a consequente distribuição de prémios aos vencedores, enquanto no período da tarde a diversão toma conta da programação com cantares ao desafio (15 horas), garraiada à minhota e exibição do Rancho Folclórico de S. Torcato .

 Porém, menos conhecido, será porventura a menção de S. Torcato na dimensão (mais) literária. Refiro-me à obra “Eusébio Macário em Guimarães”, narrativa do escritor vimaranense João de Meira (1881-1913), que como camiliano convicto imita Camilo Castelo Branco a partir da sua obra “Eusébio Macário” (1879) e que tem S. Torcato como centro da ação. Efetivamente, esta novela decorre parcialmente na vila torcatense, aquando da transladação do corpo do santo, ocorrida em 4 de Julho de 1852, data da primeira Romaria Grande de S. Torcato. Uma novela de cariz passional que envolve o boticário Eusébio Macário, com botica de mezinhas aberta na Porta da Vila, em Guimarães e a sua esposa e modista Eufémia Troncha, que nessa primeira Romaria Grande narra o reencontro de ambos os membros do casal com velhos amores do passado …  

Porém, nesta novela passional de João de Meira, aborda-se também a história do santo:

 

 “Atrás da Eufémia Troncha (esposa de Eusébio), no mesmo palanque estava o padre Silos, um antigo franciscano, prior de Vila do Conde (…) viera instalar-se ali, acompanhado de um sobrinho (…)Foi assim que ela veio no conhecimento da vida do santo. Silos narrava ao sobrinho que Torcato descendia da velha família romana de igual nome.

Torcato era de Toledo, em cuja Sé iniciara a carreira sacerdotal e donde partira a ocupar o sólio episcopal de Iria e mais tarde o do Porto, até que, havendo-se tornado um modelo de virtudes celebrado em toda a Espanha, o arcebispo de Braga, num concílio presidido por el-rei Egica, (rei dos visigodos) resignara nele, enquanto os outros bispos repetiam maravilhado: - Bonum et justum est! (…)

Foi quando S. Torcato pastoreava Braga que se deu aquela grande desgraça da entrada dos mouros na Península. Comandava-os um chefe cruel chamado Tarik, e tiveram depois outro, não menos cruel, chamado Muça. (…)

Mal S. Torcato soube que Muça se avizinhava de Braga, foi ao seu encontro, revestido dos ornamentos sacerdotais, suplicando-lhe que poupasse as vidas e respeitasse a religião dos vencidos. Encontraram-se ali em cima, onde viste a Fonte Santa. O capitão não quis escutar as palavras do Santo prelado e descarregou sobre ele o golpe de morte, sendo logo trucidados quantos o acompanhavam. Isto assim é o que vem nos bons autores. O mais são histórias, fábulas invenções do povo.”

 

De facto, nessa altura, no decurso do século VIII, Torcato Félix e os seus 27 acompanhantes seriam assassinados por Muça, chefe muçulmano que invadira a Península Ibérica. Um santo que, de acordo com a sua biografia, de autoria de Domingos Sillos, intitulada “Vida Preciosa e Glorioso Martírio de São Torcato”, que conta com a aprovação eclesiástica, seria realmente natural de Toledo e foi arcipreste dessa mesma cidade espanhola e depois bispo de Iria Flávia, na Galiza, mais tarde nomeado bispo do Porto e posteriormente arcebispo de Braga, em 693.

Ora, segundo a tradição, S. Torcato e os seus 27 acompanhantes seriam mortos a cerca de uma légua da antiga Cidade de Citânia, a meia légua de Guimarães, sendo seu corpo incorrupto preservado na Igreja Velha, que outrora foi mosteiro fundado no início do século VI por D. Rodrigo Forjaz e hoje é monumento nacional, desde 1922.

Com efeito, de acordo com a lenda e como conta Alberto Pimentel, um monge beneditino de Guimarães teria visto irromper “ um clarão estranho do sítio onde o cadáver ficara”. Assim,  guiado por tal sinal removeu as pedras da sepultura e encontrou o corpo de S. Torcato “revestido de uma samarra cor de telha, tendo ao lado um cajado tosco, símbolo da sua jurisdição espiritual”. Deste modo, nesse local, segundo relatou o padre Torquato Peixoto de Azevedo, seria erigida em 1692 uma “capelinha tosca e, junto da parede exterior do lado esquerdo, colocou-se uma pia de pedra onde cai a milagrosa água nascida na primitiva sepultura do santo.”  - a capelinha que ainda lá está, designada por Capela Fonte do Santo,

 

Também aqui, neste local do seu martírio, hoje designado por Capela da Fonte do Santo, terá rebentado uma fonte milagrosa, que ainda hoje se conserva, cujas águas ditas medicinais são  apreciadas pela população.

Assim, ainda hoje, mantém-se viva na devoção ao santo, evocado no decurso das suas romarias e festas: a Romaria Grande, no primeiro fim de semana de Julho; a Romaria Pequena, a 15 de Maio, com a romagem à Capela da Fonte do Santo; e a Feira dos 27 , exatamente no dia 27 de Fevereiro, tendo em conta os 27 acompanhantes do santo assassinados por Muça.

Romarias que, curiosamente, também levaram a S. Torcato o peregrino Camilo Castelo Branco, acima citado, que também cumpriria o ritual de visita ao santo, conforme confessa nas suas “Memórias do Cárcere”:

 

“Das Caldas fui a S. Torquato visitar a múmia do miraculoso santo. Comprei um livrinho que historiava conjeturalmente a vida e morte de Torquato, e um panegírico do mesmo pelo famoso Silos, que já passou desta vida. Beijei devotadamente o pé do santo e comprei uma nóminas, imagem e fitinhas milagrosas”.

 

Efetivamente, um santo milagreiro que é tido como padroado de todos os males, uma vez que tanto atende às necessidades do corpo como da alma, às enfermidades físicas e sucessos profissionais, como ainda ao êxito agrícola ou à livração do serviço militar.

Todavia, S. Torcato para além de padroado de todos os males, é também popularmente venerado como padroeiro da dor de cabeça e, por isso, os devotos põem o chapéu do santo na cabeça.

No entanto, esta veneração trouxe outros desejos de apropriações do santo, quiçá porque alguns entendem que santos de casa não fazem milagres. Deste modo, três tentativas de sua  transladação ocorreriam, todas elas frustradas:

-  a primeira em 1501, quando o rei D. Manuel I ordenou a concentração nas sedes concelhias das relíquias dispersas e a consequente transladação do corpo do santo para a Colegiada de Guimarães, decisão que mereceria a oposição popular;

- a segunda em 1597, quando o arcebispo D. Agostinho de Jesus e Castro ordenou a transladação do corpo do santo para a Sé de Braga, tendo o povo resistido à ordem com o toque dos sinos a rebate e armando-se  com massarocas (pedras) contra quem quisesse roubar o santo;

- a terceira vez por parte do arcebispo de Braga D. Sebastião de Matos e Noronha, em 1637. Todavia, todas as tentativas sairiam goradas, o que levou o povo a proclamar:

 

“São Torcato, corpo santo

Trancai as portas por dentro

Que o Arcebispo de Braga

Quer o vosso rendimento.”

 

Deste modo, S. Torcato aqui ficaria na terra que de seu nome, vila desde 21 de Junho de 1995. Faltará apenas um calcanhar que está à guarda do Museu Alberto Sampaio, num relicário de prata, a única parte do santo que conseguiu sair desta freguesia vimaranense. 

Mas, acima de tudo, continua como uma das referências hagiográficas dos nosso santos de casa…

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