A propósito do Dia Mundial da Poesia
No dia 21 de Março comemora-se o Dia Mundial da Poesia, que neste ano de 2025 coincide com os centenários das publicações de “Camões”, de Almeida Garrett (1799-1854), obra introdutória do romantismo em Portugal e “Sonetos”, trabalho poético de Teixeira de Pascoaes (1877- 1952), também editado há 100 anos atrás pelo poeta vimaranense Guilherme de Faria.
Ademais, perfazem 100 anos que foram publicadas as obras “Poemas do Deus e do Diabo” de José Régio (1901-1969) e perpassam 200 anos do nascimento de Camilo Castelo Branco (1825-1890), que também escreveu poesia.
Escolhemos assim evocar Camilo e Régio, neste Dia Mundial da Poesia. O primeiro pela menor divulgação da sua poesia, geralmente desconhecida; o segundo pela sua dimensão profunda da condição humana, presente nesta obra centenária.
De facto, ainda que Camilo seja predominantemente conhecido como novelista passional e satírico, iniciou-se literariamente na poesia com “Os Pundonores Desagravados” (1845) e “Murraça” (1848) e curiosamente terminaria do mesmo modo. Realmente, regressaria ao universo das musas no final da vida, já quase cego, editando “Nostalgias” (1888) e “Nas Trevas/Sonetos sentimentais e humorísticos” (1890) a última obra publicada em vida, constituída por 32 sonetos repartidos pelas rubricas “Sentimento” (14),” Humorismos” (17) e “Epílogo”.
Todavia, é muito diversificada a temática poética de Camilo Castelo Branco, quer de religiosa e Lírica, quer satírica, que frequentemente passava por colaborações na imprensa e jornais, por vezes sob pseudónimos. De qualquer modo, como ele próprio reconhece ironicamente, a sua poesia parece não igualar a mestria alcançada noutros géneros literários, em especial a novelística:
“No cérebro deste sujeito nunca fosforejou pirilampo de poesia bem medida. Não perpetrou grandes delitos de romantismo impresso, porque fui de uma roda de homens práticos, céticos, desconhecidos da Lua, mais amigos do teatro que das florestas rumorosas, e mais dados ao ponche queimado que ao remugir das vagas e às brisas fagueiras do mar, o qual principalmente apreciavam as ostras na Águia de Ouro.”
Realmente, alguns dos seus poemas ilustram sumariamente aspetos afetivos e emocionais da sua vida, como são os casos dos sonetos “a Minha Neta”, escrito após o falecimento precoce da neta Maria e “Os Meus Amigos”, sobre o abandono a que foi votado após a cegueira, composição poética que dedicaria a seu grande amigo e “irmão” Freitas Fortuna, ou ainda “Jorge” acerca do seu filho louco:
OS MEUS AMIGOS
“Amigos cento e dez e talvez mais,
Eu já contei! Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.
Um dia adoeci profundamente,
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.
Que vamos nós (diziam) lá fazer,
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e dez impávidos marotos.”
JORGE
“Constantemente vejo o filho amado
Na minha escuridão, onde fulgura,
A extática pupila da loucura,
Sinistra luz dum cérebro queimado.
Nas rugas do seu rosto macerado
Transpira aa cruciantíssima tortura
Que escurentou na pobre alma tão pura
Talento, aspirações … tudo apagado!
Meu triste filho, passas vagabundo
Por sobre um grande mar calmo, profundo,
Sem bússola, sem norte e sem farol!
Nem gosto nem paixão te altera a vida!
Eu choro sem remédio a luz perdida…
Bem mais feliz és tu, que vês o sol.”
José Régio e a sua centenária obra “Poemas de Deus e do Diabo” é outro poeta que recordamos. De facto, delineia-se nesta obra a expressão teatral das ambivalências humanas, enquanto anjo em rebelião no seu combate existencial com Deus, que conhecido poema “Cântico Negro” é plausivelmente um dos mais representativos dessas linhas ideológicas:
“Vem por aqui” – dizem-me alguns olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem “vem por aqui”!
Eu olho- os com olhos lassos.
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços
E nunca vou por ali.
A minha glória é esta
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém
- Que ei vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
(…)
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem.
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regra, e tratados, e filósofos, e sábios
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios …
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onde que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou …
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!”
Efetivamente, apostado em “não acompanhar ninguém” e “criar desumanidade” no sentido social da expressão, o sujeito poético prefere a lição da pedagogia do erro (“escorregar nos becos lamacentos,/ redemoinhas os ventos,/Como farrapos, arrastar os pés sangrentos”) do que perder o norte do percurso pessoal. Deste modo, proclama a seu propósito de originalidade e criatividade (“ desflorestar florestas virgens,/ E desenhar os meus próprios pés na areia inexplorada”), denunciando o comodismo do que é fácil e buscando o difícil, significativamente expresso nas imagens do Longe, da Miragem, dos abismos, torrentes e desertos.
Assim, em contestação à organização do mundo construído, com as suas estradas, jardins, canteiros, pátrias, tetos, regras, tratados, filósofos e sábios, contrapõe o mito da Loucura própria, claramente alicerçado numa filosofia maniqueísta (“Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo”). Assim, em contradição com a autodivinização e obedecendo a um impulso revolucionário de um cosmos anarquista (“vendaval que se soltou; onda que se levantou; átomo amais que se animou”), desconhece as vias do destino do seu percurso, contestando e recusando a orientação alheia.
Régio lega-nos ainda nesta obra centenária o poema “Fado Português”, cantado por Amália Rodrigues, que dá nome ao álbum de 1965, editado no âmbito do denominado “novo fado”. Uma outra faceta polifacetada da lírica portuguesa, que nos permite cantar, neste Dia Mundial da Poesia:
“O fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava”
No fundo, dois poemas atuais: um grito proclamatório de fé no mito da Liberdade, numa postura ousada e rebelde da caminhada humana, que hoje com trumpices, putinices e quejandos carece de ser enfrentada; e a expressão da saudade, esta palavra tão portuguesa, que tem sido o nosso fado.
Poemas e poetas que poderemos cantar e (re)ler neste dia, como por exemplo a poetisa Maria Teresa Horta (1937-2025) que recentemente partiu para outras paragens.
Viva o Dia Mundial da Poesia e o seu sentido emotivo e libertador…