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Amália – O canto dos poetas

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ segunda-feira, outubro 21, 2024
© Direitos reservados
Ouvir Amália e o fado, Património Cultural Imaterial da Humanidade desde 2011, será porventura o melhor preito que lhes prestamos, e de fruirmos deleitosamente algo que no nosso fado nos orgulha …

Amália da Piedade Rebordão Rodrigues, nome completo de AMÁLIA RODRIGUES, (1920-1999) Rainha do Fado e voz de Portugal, está novamente viva entre nós, a propósito dos 25 anos do seu falecimento (6 de Outubro de 1999).

De facto, desde os seus primeiros passos como solista no “Fado de Alcântara”, nas marchas populares lisboetas de 1935, passando pelas audições no “Concurso da Primavera” e a estreia profissional em 1939, no Retiro da Severa e posteriormente no Solar da Alegria e Café Mondego até à revista, no Teatro Maria Vitória, logo seguido do início da sua carreira internacional, no Teatro Real de Madrid, a fadista conquistaria o país e o mundo com a sua voz insuperável. Voz que seria também sonoramente desbobinada na passerelle do cinema português. Mas acima de tudo, que a alcandoraria ao top do fado, cujas vendas musicais se estimam em mais de 30 milhões de cópias, repartidos por cerca de 3 dezenas de países.

 

Porém, mais do que a perspetiva biográfica (e muito haveria a dizer e contar), a Amália deste texto centra-se sobretudo na fadista que cantou os grandes poetas portugueses, da Idade Média à atualidade.

De facto, Amália deu voz à poesia cultivada desde os tempos medievais, como Mendinho (“Cantiga de Amigo”), Pêro de Viviães, ou D. Dinis:

 

                                               “Ai flores do verde pino

                                               Dizei que novas sabedes

                                               Da minha alma, cujas sedes

                                               Ma perderam no caminho”

 

Canto que se estendeu aos poetas seiscentistas como Bernardim Ribeiro (“Malaventurado”) ou João Roiz Castelo Branco:

                                               “Senhora, partem tão tristes,

                                               meus olhos por vós, meu bem,

que  nunca tão tristes vistes

outros nenhuns por ninguém”

 

Concomitantemente, uma voz que passa também por Camões, que este ano comemora 500 anos de nascimento, cantando, entre outros, o soneto “Erros meus, má Fortuna, Amor ardente”, ou os vilancetes “Perdigão perdeu a pena”  e  “Descalça vai para a fonte/Leanor pela verdura;/vai fermosa e não segura”.

Camões, cuja abordagem (“fadista”) provocaria alguma polémica entre alguns “puristas”, o que levaria Amália a descer a terreiro e afirmar que “um poeta não é para ficar na gaveta ou numa estante”

No entanto, Amália centraria fundamentalmente o seu reportório lírico nos poetas do século XX, embora haja também interpretado a autores românticos como António Feliciano de Castilho, como ocorreria com a cantilena de tom popular “Os treze anos”:

 

 

                                               “Já tenho treze anos

Que os fiz por Janeiro

Madrinha, casai-me

Com Pedro gaiteiro.

 

Realmente, seria entre os poetas contemporâneos e especificamente do século XX, que Amália mais se fincaria. Assim, canta António Feijó (“Fado Alfacinha”), Júlio Dantas (“Novo fado da Severa”), ou ainda Afonso Lopes Vieira (“ Romance”), Almada Negreiros (“Rondel do Alentejo”) ou Guerra Junqueiro (“As penas”).

Mas também Sebastião da Gama (“Nasci para ser ignorante”), Sidónio Muralha (“Raízes/Amantes separados”), e Alexandre O’Neill (“Formiga bossa nova/Gaivota”)

 Ademais, a fadista dá voz, para além dos consagrados vates da sua terra, aos poetas brasileiros, como Vinicius de Moraes (“Saudades do Brasil”) e Cecília Meireles (“As mãos que trago”/Soledad”, ou “Naufrágio”):

 

                                               “Pus o meu sonho num navio

                                               e o navio em cima do mar

- e despois, abri o mar com as mãos

para o meu sonho naufragar”

 

Formas que, paralelamente à sua matriz popular do fado castiço, como nos temas “Foi Deus”, um dos mais significativos do reportório inicial amaliano, ou “Tudo isto é fado”, pois o “fado é tudo o que eu digo/Mais o que eu não sei dizer”, enformam ainda a fadista a trilhar caminhos inovadores, nomeadamente o “fado canção”, acompanhado por orquestra de cordas.

Porém, quer num registo quer noutro, não há alterações significativas em relação à tradição popular, que tem geralmente Lisboa por protagonista, tema e cenário: “és o castelo da proa/da velha nau Portugal”. Lisboa dos seus bairros, nos santos populares e da vida airada, ou dos amores entre varinas e marujos.

“Fado Português”, assim se intitula o poema de José Régio cantado por Amália, dilucida claramente as suas raízes naturais do seu povo marinheiro, cantador triste do seu fado:

 

                                               “O fado nasceu um dia,

                                               quando o vento mal bulia

                                               e o céu o mar prolongava,

                                               na amurada dum veleiro

                                               no peito dum marinheiro

                                               que, estando triste, cantava”.

 

Efetivamente, apesar de balizado em tópicos como o melancólico destino, o amor, a paixão, o ciúme, o abandono e a saudade, a que juntam linhas temáticas como o sofrimento, a esperança desenganada, o despeito ou a separação, os fados de Amália transfiguram pela mediação da sua voz versos banais e literários em pujantes momentos de interioridade poética. Canto que concilia a sonoridade verbal de simplicidade aparente com uma expressão dramática e pungente, que só ela sabe dar voz. Canto de versos de sina desventurada, como são o caso destes atribuídos à Infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel I, glosados posteriormente por vários poetas, e que constituem a última quadra do “Fado Hilário”:

 

                                               Já não posso ser contente

                                               Trago esperança perdida

                                               Ando perdida entre a gente

Não morro nem tenho vida.

 

Seriam porém Pedro Homem de Mello e David Mourão Ferreira os principais poetas da voz de Amália, que teve em Alain Oulman e Frederico Valério os seus principais compositores.

Do primeiro recordamos a capital do Alto Minho em fados como “A Minha terra é Viana” ou “Havemos de ir a Viana” , mas também  “Entrega” e “Olhos Fechados”, “Prece” e “O Rapaz da camisola verde”, ou ainda “Fria Claridade”. Mas, entre os demais, “Povo que lavas no rio”, um hino ao povo e à sua força, que, como este poema expressa implícita e explicitamente, faz a distinção percetível entre os poucos que o defendem e os muitos que o ofendem:

 

                                               “Povo que lavas no rio

Que talhas com o teu machado

As tábuas do meu caixão

(…)

Pode haver quem te defenda

Quem compre o teu chão sagrado

Mas a tua vida não”

 

Por seu turno, do segundo (David Mourão-Ferreira), recordamos Lisboa em “Madrugada de Alfama” e “Maria Lisboa”, ou ainda em “Barco Negro” e “Libertação”. Outrossim, “Primavera” e “Sombra, entre vários outros como “Abandono/(Abaixo) O Fado de Peniche”, alusivo aos presos políticos:

 

                                               “Por teu livre pensamento

                                               foram-te longe encerrar

                                               Tão longe que o meu lamento

Não te consegue alcançar

E apenas ouves o vento

E apenas ouves o mar.

 

Levaram-te a meio da noite

a treva tudo cobria

Foi de noite uma noite

De todas a mais sombria

Foi de noite, foi de noite

E nunca mais se fez dia”.

 

José Carlos Ary dos Santos seria outro poeta cantado pela fadista, que em “Retrato de Amália”, sob o fundo musical do “Fado de Amália”, da autoria da dupla José Galhardo e Frederico Valério, seria assim pincelada:

 

“És filha de Camões, filha de Inês

Assassinada voz de portuguesa

                                               Cantando a nossa imensa pequenez

                                               Com laranjas e gomos de tristeza

                                               (…)

Falando desatada de saudade

                                               Choras um povo, cantas a balada

                                               Mais bonita que soa na cidade

                                               de Lisboa, por ti apaixonada”.

 

De facto, de Ary dos Santos, Amália canta “Alfama”, “Amêndoa Amarga” “Meu amigo está longe”, ou “Rosa Vermelha”: “trago uma rosa vermelha/não preciso de mais nada”.

 Um canto de maior intenção social e uma lírica amorosa de forte expressão metafórica, que canta Lisboa e a sua vida.

 Mas Amália canta também Manuel Alegre, que conheceria nos anos 70 e a consagraria como “a voz da alma portuguesa e de todos os versos”.

Deste modo, Amália interpretaria também poemas de Alegre como “Trova ao vento que passa” e a expressão do exílio, bem como o amor de “Meu amor é marinheiro”:

 

                                               “Meu amor é marinheiro

                                               quando suas mãos me despem

                                                é como se o vento abrisse

                                               as janelas de meu corpo”.

 

Assim, pela voz dos poetas consagrados e/ou populares, bem como através de poemas da sua própria lavra, Amália canta sobretudo a sujeição da condição humana ao destino (“triste sina”) com longa história na literatura portuguesa, como é elucidativo o poema “Amantes Separados” de Sidónio Muralha

 

                                               “A vida quis que fosse assim nosso destino

Do grande amor que quis vencer os vendavais

A vida quis que fosse assim nosso destino

Onda quebrada contra a praia e nada mais”

 

Destino a que junta a saudade, espécie de carne do nosso ser, que Eduardo Lourenço considera ser um enigma e um labirinto dos portugueses com o seu tempo: “com a saudade, não recuperamos apenas o passado como paraíso, inventamo-lo”.

Em súmula e como disse Jorge Sampaio, ex-Presidente da República, “Amália fez da sua voz uma pátria, um bilhete de identidade dela e nosso”.  

 

Ouvir Amália e o fado, Património Cultural Imaterial da Humanidade desde 2011, será porventura o melhor preito que lhes prestamos, e de fruirmos deleitosamente algo que no nosso fado nos orgulha …

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