500 anos do nascimento de Camões
Em 1524/1525, pois há dúvidas quanto ao ano concreto do seu nascimento, Camões, o nosso “príncipe das letras” terá visto, ”claramente visto”, a luz dos dias, já lá vão 500 anos!
No entanto, dados recentes apontam para a data de nascimento de Camões em 23 de Janeiro de 1524, tendo em conta o soneto “O dia em que nasci morra e pereça”, que coincide com o eclipse ocorrido de facto, referido na primeira quadra do soneto:
“O dia em que nasci morra e pereça
Não o queira jamais o tempo dar
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar
Eclipse nessa pessoa o sol padeça”
(…)
Todavia, Camões seria respeitosamente evocado em Guimarães sempre que as circunstâncias o exigiam. Recordo, por exemplo, o 10 de Junho de 1880, aquando do tricentenário do seu falecimento, como consta no registo das “Efemérides vimaranenses” de João Lopes de Faria:
“A Comissão criada para celebrar o tricentenário de Camões principiou as suas solenidades neste dia por uma missa rezada na Colegiada, em que foi celebrante o Padre António José Pereira Caldas Júnior, pelas 11 horas da manhã (…)
Terminada a missa, a comissão dos festejos, acompanhada por todas as corporações, dirigiu-se à Casa da Câmara e estando aí reunidos em sessão solene os vereadores, foi-lhes apresentado e lido pelo Conde de Margaride uma mensagem, na qual a mesma comissão oferecia ao município dos exemplares duma tradução de alguns cantos dos Lusíada em francês pelo duque de Palmela e revista por madame Stael (…)
Na mesma mensagem se pedia à Câmara que um dos largos ou ruas de Guimarães fosse batizada com o nome de Camões e que se resolveu logo por unanimidade, sendo por isso escolhida a antiga Rua Nova das Oliveiras (…)
Terminada a sessão à meia hora da tarde, saiu uma banda real, convidando os habitantes a iluminarem as suas casas (…)
No entanto, o relato de João Lopes de Faria daria ainda conta de um jantar concedido aos presos, toques de sinos a repique e o cancelamento da iluminação no Toural, por causa da chuva. Porém, nessa noite de 11 de Junho, reporta-se também o espetáculo de gala ocorrido, que contou com a representação pela primeira vez o original do cónego doutor António d’Oliveira Cardoso “Lágrimas e Risos” e a recitação de algumas poesias, em especial produções literárias de vimaranenses, entre os quais se distinguiu o doutor Pereira Caldas. Um espetáculo cujo saldo reverteria em benefício das obras da Penha, que por esse motivo iluminaram nessa noite o cimo dos penedos e deu uma salva de morteiros.
Já no século XX, Camões também seria recordado em Guimarães. Relembro a iniciativa “Dê 10 minutos à Língua Portuguesa”, ocorrida entre dezembro de 2017 e maio de 2018, na qual “Os Lusíadas” seriam manuscritos por cerca de 450 “copistas”, dos seis aos 95 anos, entre os quais o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, que escreveria as três últimas estrofes.
Uma criativa e excelente iniciativa, à qual antigos professores da Secundária Martins Sarmento e o seu movimento “Voltar à Escola” deram arranque e que contou ainda com o apoio da Biblioteca Municipal Raul Brandão e da Sociedade Martins Sarmento. De facto, uma edição manuscrita e singular que atualmente se encontra à guarda da Sociedade Martins Sarmento, ao lado da primeira edição impressa d’ “Os Lusíadas” de 1572, existente nesta instituição vimaranense.
Aliás, seria ainda na Sociedade Martins Sarmento, que, em Outubro de 2021 seria lançada, no âmbito da Bienal de Ilustração de Guimarães, uma interessante edição d’ “Os Lusíadas”, ilustrada por 10 mulheres, que numa parceria feminina, contaria ainda com a “atualização do texto” para linguagem contemporânea, elaborada pela professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, doutora Rita Marnoto.
Camões e “Os Lusíadas” seriam também tema de pintores vimaranenses, como o conceituado José de Guimarães e do pintor naïf Isabelino Coelho, que este ano celebra 100 anos de nascimento.
Mas Guimarães está também imortalizado nos “Lusíadas”, em concreto nas estrofes 31 e 35 do canto III, que evocam a Batalha de São Mamede e o Cerco de Guimarães por Afonso VII, em 1127, a merecer a colocação de um placa evocativa no Monte Latito:
“De Guimarães o campo se tingia
Co sangue próprio de intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia
Ao seu filho negava amor e terra”.
Co ele posta em campo já se via,
E não vê a soberba o muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor,
Mas nele o sensual era maior.
Não passa muito tempo, quando o forte
Príncipe de Guimarães está cercado
De infinito poder, que desta sorte,
Foi refazer-se o inimigo magoado.
Mas, como se oferecer à dura morte
O fiel Egas amo, foi livrado
Que, de outra arte, pudera ser perdido,
Segundo estava mal apercebido.”
Neste ano do quinto centenário do nascimento de Camões, ignoramos ainda o que as escolas e instituições locais têm em mente para rememorar Camões, que, em 10 de junho de 1980, teve comemorações nacionais e a produção de duas peças teatrais: “Erros meus, má fortuna, amor ardente” de Natália Correia e “Que farei com este livro?” de José Saramago.
Deixo portanto a questão: que farei com esta data? Para que, de facto, contribua para manter vivos “aqueles que por obras valorosas/ se vão da lei da morte libertando” …
Termino com Jorge de Sena e o seu poema “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”:
“Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos´, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-se, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada que o castigo
será terrível. Não só quando
vosso netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fugis que não sabeis.
Como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu
tudo por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que só por vós, sem roubo havereis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há ser buscado,
para passar por meu. E para todos os ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.”
Efetivamente, como diria José Gomes Ferreira, “quando um amigo morre, que nos resta senão ressuscitá-lo?” …
Irá Guimarães recordar este amigo?