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Camilo e(m) Guimarães

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ terça-feira, março 11, 2025
© Direitos reservados
Re(ler) Camilo e eventualmente visitar alguns dos seus espaços emblemáticos (...), será porventura e certamente o melhor preito que lhe prestamos…

Neste ano de 2025 perpassam 200 anos do nascimento de Camilo Castelo Branco e 135 anos da sua morte (1825-1890), que apesar de ter nascido em Lisboa, seria no Norte, após ficar órfão de mãe e pai, que viveria longos tempos e trilharia veredas para cenários da sua vasta obra ficcional em especial na dramaturgia e novelística.

Ora, Guimarães é um dos espaços físicos e sociais que surge frequentemente na obra camiliana, em especial durante o período em que Camilo andou perseguido pela justiça, acusado de adultério por Manuel Pinheiro Alves, marido de Ana Plácido. De facto, aqui recebeu acolhimento do amigo vimaranense Francisco Martins Sarmento, em 1860.

Com efeito, em “Memórias do Cárcere” (1862), obra escrita no decurso da sua prisão na Cadeia da Relação do Porto, Camilo evoca no seu “Discurso Preliminar”, alguns desses momentos vividos na cidade vimaranense, aludindo a sua relação de amizade com Francisco Martins Sarmento: “ não vi onde encostar a cabeça febril, e lembrou-me que tinha ali um conhecido, um poeta, um homem de existência amargurada. Procurei o conhecido, e achei um amigo, como usam raramente ser os irmãos, em Francisco Martins (…) Pernoitei no ergástulo da senhora Joaninha, e fui no dia seguinte para as Caldas das Taipas esperar que Francisco Martins me lá desse um leito em sua casa, e um talher à sua mesa”.

Uma intimidade que solidificar-se-ia entre ambos, a partir de então, com frequentes conversas, visitas às termas taipenses e passeios de barco no rio Ave, ou caminhadas pedestres à Citânia de Briteiros, acabando Camilo por viver temporariamente nas Caldas das Taipas, junto ao Banhos Velhos e posteriormente no Solar da Ponte, propriedade de Martins Sarmento (e atual Museu de Cultura Castreja), que também refere na citada obra:

Escolhi o quarto cujas janelas faceavam com um recortado horizonte de arvoredos, e a cumeeira chã dum serro onde se divisam as relíquias de antiga povoação, que lá dizem ter sido Citânia.”

Igualmente, uma amizade que cresceria em passeios e visitas que igualmente se estenderiam um pouco por toda a região, inclusive S. Torcato, como o documenta esta passagem, igualmente extraída de “Memórias do Cárcere”:

“Das Caldas fui a S. Torquato visitar a múmia do miraculoso santo. Comprei um livrinho que historiava conjeturalmente a vida e morte de Torquato, e um panegírico do mesmo pelo famoso Silos, que já passou desta vida. Beijei devotadamente o pé do santo e comprei uma nóminas, imagem e fitinhas milagrosas.”

Porém, para além da amizade com Martins Sarmento, Guimarães está também presente em muitas obras camilianas, em especial nas “Novelas do Minho” (1875/1877) na qual Camilo nos oferece saborosas leituras minhotas, nas suas oito novelas publicadas em 12 volumes, entre as quais sobressaem “Gracejos que matam”, com ação em Vizela e especificamente “A Viúva do Enforcado”, cuja ação decorre na cidade-berço e terras de Espanha.

Efetivamente, a novela “A Viúva do Enforcado”, adaptada pela SIC em série televisiva em 1993, conta-nos a história de Teresa, de Jesus, única filha devota do surrador e comerciante de curtumes vimaranense Joaquim Pereira e a sua paixão pelo jovem ourives Guilherme Nogueira, para de namorados que perante os amores contrariados pelo surrador se vêm forçados a fugir para Espanha.

Obviamente, uma narrativa cuja ação se desenrola em espaços vimaranenses como o Toural e a Oliveira, mas também as velhas ruas da Arrochela, dos Pasteleiros, das Pretas, dos Fornos ou Alcobaça, entre muitas outras. Porém, uma história que tem também como protagonistas o par Inês e António Carneiro, este também português, fugido à forca por homicídio político dos lentes miguelistas da Universidade de Coimbra, em 18 de Março de 1828, que se cruza com o casal Guilherme Nogueira e Teresa de Jesus, em Espanha, desencadeando novas peripécias.

Mas para além de “Novelas do Minho”, são inúmeras as obras camilianas com referências a Guimarães. Citaremos algumas delas, como é o caso da obra “A Caveira da Mártir” (1875), baseada em casos históricos, interligados pelas ações e domínio da Santa Inquisição na justiça portuguesa, na década 30 do século XVIII.  Igualmente, em “Anátema” (1851), o primeiro romance camiliano que aqui referencia a formosura das filhas de Guimarães:

“Micaela e a irmã Jacinta eram filhas de um cuteleiro natural de Guimarães e desde 1708 estabelecido em Braga. Se não fosse o contraste da irmã, dera-vos eu aqui em testemunho real da opinião de formosura por que são tidas as filhas de Guimarães um tipo especial de lindeza e graça nesta donairosa Micaela entre os quinze e o seus vinte e quatro anos.”

Ademais, a História é também o pano de fundo da obra “A Brasileira de Prazins” (1882), um dos últimos grandes romances camilianos. Um romance que não só conta a história de Maria de Prazins e do seu amor por José Dias, como também nos dá um retrato das condições sociais, políticas económicas do Minho, no período após as lutas liberais:

Era uma hora da noite quando o exército realista abandonou Guimarães e entrou na estrada de Amarante.

Pinho Leal inventara o ataque dos cabralistas para salvar-se a si e aos outros da carniçaria inevitável; porque, ao romper a manhã do dia seguinte, entraram em Guimarães seiscentos soldados do Casal ainda embriagados da sangueira de Braga. Reproduzem-se textualmente no seu estilo militarmente pitoresco os veracíssimos esclarecimentos de Pinho Leal:

(…) Saí com eles por um beco e fui com eles pela frente dar uma descarga no nosso piquete de Santa Luzia, e outra no piquete do Castelo. Ao mesmo tempo, não sei quem é que estava num monte no norte de Guimarães que deu uns poucos de tiros que muito ajudaram o meu plano. O “Triste” em vista da nossa prévia combinação, mandou tocar a reunir e formou o suporte debaixo dos Arcos da Câmara. Eu e os meus cinco homens viemos sorrateiramente metemo-nos na vila. Fui passar revista ao suporte a tempo em que já na Praça da Oliveira estava muita gente armada”.

Efetivamente, uma lista enorme de alusões a Guimarães perpassam na vasta obra camiliana, quer em acontecimentos quer em efabulações, em recordações variadas, ou referências diversas. É o caso da passagem alusiva ao periódico “Azemel Vimaranense”, que recentemente comemoraria 200 anos de existência, referido n’ “A Bruxa do Monte Córdova” (1867), que às páginas tantas (página 44), denuncia os abusos dos poderosos e desmoralização dos frades.

Guimarães recorda ainda Camilo na sua toponímia citadina, numa via perpendicular à Avenida D. João IV. Porém, em 1991, deixaria demolir a casa onde Camilo viveu, nas Caldas das Taipas, sem que José de Oliveira e o escritor Ferreira de Castro tivessem sido capazes, nos anos 60, de homenagear e instalar no local uma placa evocativa em azulejos expressamente executados para o efeito

 

“NESTA CASA VIVEU ESCONDIDO

POR UMA QUESTÃO DE AMOR

O GRANDE ROMANCISTA

CAMILO CASTELO BRANCO”

 

Além disso, aquando da sua residência em Seide, eram também frequentes por parte de Camilo as visitas ao “berço da monarquia”. Efetivamente, de Seide a Guimarães era um pulo, mesmo a cavalo! Por isso, Camilo montava frequentemente o seu equídeo e dirigia-se a Guimarães, em especial aos sábados de manhã, que na altura era o dia da feira.

O escritor regionalista Alfredo Guimarães, dá-nos conta dessas cavalgadas, num texto datado de 1911:

“Rompia a cavalo pela rua dos Pombais – quase sempre com o seu filho Jorge; e, subindo as ruas dos Gatos (atual rua D. João I), S. Domingos e Toural (lado sul), ia instalar-se na antiga Hospedaria da Gaita, que ficava ao princípio da rua de Mata Diabos.

De dia, o romancista passeava na feira, conversava em certas lojas, parava no botequim do Vago-Mestre e estudava, talvez esses tipos cheios de observação da sua novela A Viúva do Enforcado. O Eusébio Macário devia ter tido ali, também, um grande estudo. E outro tanto a cena da Enjeitada, da criança exposta na roda de Guimarães, que ele por certo colheu de algum caso da travessa que faz face ao edifício da Câmara daquela cidade, chamada ainda hoje Travessa dos Enjeitados.

Camilo aparecia em Guimarães quase que nas circunstâncias de vestuário em que Rafael Bordalo Pinheiro o fixara para o seu magnífico Álbum das Glórias: longo casaco de camelão; uma tira de seda preta enlaçada na frente do colarinho; um alto chapéu de pasta, em chaminé, óculos, a face mosqueada das bexigas, calções ajustados de anta preta, botas “à Frederica” e um cassetete arroxeado ao pulso. Na partida envolvia-se, pela cara, numa capa dom-joanesca. Mas durante o dia mantinha, inalteravelmente, essa toilete mestiça, de morgado e boleeiro.

No botequim da terra, à noite, Camilo jogava imenso; e perdia quase sempre. Para ele – como, creio, para quase todos os jogadores- existiam cartas de azar, de perda certa.

(…)

Era assim que ele passava os sábados em Guimarães. Como aí digo, Camilo (infeliz no jogo), arruinava-se. Os seus débitos e desmandos de língua, na batota de Guimarães, eram extraordinários. E regressando tarde ao hotel – quando regressava! …- levantava-se poucas horas depois, montava a cavalo com o filho, traçava a capa e rompia, lá ao fim das mesmas ruas, pela estrada plana de Creixomil – a qual liga Guimarães com Famalicão”.

Aliás esta sua faceta é também confirmada em “Memórias II” (1925) de Raul Brandão, no texto “Visita a Seide”, ocorrida em Novembro de 1914 (inserido no capítulo “Vivos e Mortos”):

A casa está desabitada. Nem um vestígio de ternura neste buraco, donde ele saía de combinações de dramas e combinações de dinheiro, para correr a cavalo a batotas de Famalicão e Guimarães.”

Um texto que, de igual modo, Raul Brandão esboça um interessante retrato psicológico de Camilo.

Mas, além destas “cavalgadas” e a amizade com Martins Sarmento, o escritor fez também outras esporádicas amizades, nomeadamente com Alberto Sampaio, apesar das diferenças notórias de personalidade entre ambos. De facto, os dois acabariam por colaborar entre si, quer em traduções de diversas obras, uma vez que Sampaio dominava várias línguas, quer na editora popular “Leitura para Todos”, uma publicação literária e instrutiva, que teria vida efémera.

Outrossim, Camilo teria em Guimarães admiradores entusiastas, como João de Meira (1881-1913), o conceituado médico vimaranense e investigador histórico, que foi também jornalista e poeta. De facto, notável cultivador da arte da imitação e pastiche, João de Meira escreveria, a obra “Eusébio Macário em Guimarães”, tendo por inspiração referencial a obra camiliana “Eusébio Macário”, cuja ação se inicia na cidade e decorre posteriormente em S. Torcato, à laia de novela passional, no decurso da romaria da transladação do santo.

Ademais, o escritor seria também evocado no Centenário de Camilo em Guimarães, em 1990, que para o efeito constituiu uma Comissão das Comemorações formada pela Câmara Municipal de Guimarães, Círculo de Arte e Recreio e Sociedade Martin Sarmento. Uma iniciativa que levou à organização de um livro de homenagem a Camilo sob a responsabilidade de Joaquim Santos Simões.

Re(ler) Camilo e eventualmente visitar alguns dos seus espaços emblemáticos como o Solar de Ponte, a Casa-Museu de Seide, a ex-Cadeia da Relação do Porto, ou Ribeira da Pena (Friúme), entre outros, será porventura e certamente o melhor preito que lhe prestamos…

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