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Crónica de (um outro) Abril

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ quinta-feira, abril 25, 2024
© Direitos reservados
Não vivi essa madrugada na minha querida terra e berço da nação, mas senti-a com a mesma emoção de Camões quando escreveu “Aquela triste e leda madrugada”, pastiche a esta outra madrugada de Abril.

“Matam o Mestre! Matam o Mestre!”, eram os gritos mobilizadores e agitadores do pajem do mestre de Avis, secundados por Álvaro de Pais, que provocaram o alvoroço do povo de Lisboa, que tumultuosamente desceu à rua!.

Se bem se lembram, um episódio histórico em prol da independência do jugo castelhano, na primeira metade do século XIV, que Fernão Lopes nos dá impressivamente conta na “Crónica de D. João I” e nos faz lembrar de outras lutas pela liberdade, como o 25 de Abril de 1974

De facto, em 25 de Abril, a Revolução dos Cravos foi também uma ação do povo, enquanto herói coletivo representado no Movimento das Forças Armadas e nas camadas populares que saíram e invadiram as ruas a vitoriar os militares de Abril. Um grito de VITÓRIA que também ecoaria na cidade, para além do Estádio D. Afonso Henriques, como o documenta o semanário “Notícias de Guimarães” de 29 de Abril: 

 “Na segunda-feira, ao fim da tarde a população vimaranense aglomerada nas ruas e praças da cidade vitoriou as Forças Armadas, durante a passagem de elementos do Regimento de Infantaria 8 que, vindos do Porto se dirigiam à sede do distrito.

Das varandas que se viam repletas de pessoas foram lançadas flores e nuvens de papelinhos com as cores nacionais. Na Praça do Toural saudou as Forças Armadas o Dr. António Mota Prego, agradecendo aquela calorosa manifestação o capitão Rui Guimarães, e Infantaria 8”

Infelizmente, não vivenciei esses momentos, porque estava na Guiné-Bissau, na guerra colonial, a cumprir o serviço militar obrigatório. Como tal, à laia de Gomes Eanes de Zurara, opto pela Crónica da Guiné à minha maneira, ainda que contra o espírito cruzadista que lá me levara a aportar no Uíge e compungido por aquele imanente sentido da dor de quem passa o Bojador.

 

Eu conto:

Em 25 de Abril de 1974, caro Batista-Bastos, estava no sudoeste da Guiné-Bissau, integrado no Batalhão de Caçadores 4514, na célebre zona de morte da floresta do Cantanhez, hoje uma pacífica área ecológica e protegida! Dela, rememoro porém, ainda hoje, a vida daquele espaço, presentificada majestosamente naquela imagem maravilhosa de centenas de primatas assustados a atravessarem a picada, com as crias às costas, mais barulhentos que as nossas viaturas!

Outrossim, recordo com nitidez que nesse 25 de Abril de 1974 (ainda) ocorreram bombardeamentos aéreos, plausivelmente pelo facto da cadeia de comando ainda não estar afinada. E relembro-me bem da minha estupefação perante informação da rádio em língua francesa “Coup d’état au Portugal”! Efetivamente, na minha primeira leitura, presumi tratar-se-ia apenas de uma referência tardia ao 16 de Março, que o meu medíocre francês desde os tempos do liceu não permitia discernir claramente …

Todavia, logo na messe, ainda nessa manhã, rapidamente as dúvidas se dissiparam pela voz do capitão Belo, do MFA. De imediato, a nossa adesão ao MFA seria entusiasta, brindada entre umas “loirinhas” e outras bebidas alcoólicas e “urros” de liberdade, em especial por parte do furriel Pacheco, que finalmente iria conseguir instalar matraquilhos na sua Tabacaria Açoriana, em Ponta Delgada, que haviam sido interditos pelas autoridades “fascistas”.

Dias depois, deixamos Cadique e embarcamos na LDG (lancha de desembarque grande) com armas e bagagens, rio Cumbijã abaixo e Atlântico acima, rumo à capital Bissau, que carecia de um batalhão experimentado para manter a ordem e a segurança na capital, exposta a vários assaltos a lojas comerciais e desordens várias. Começariam assim as pesadas rondas diurnas e noturnas pelas instalações do aeroporto, zona comercial e de prostituição, serviços de comunicações, sede da ex-PIDE (com bons quartos de ar condicionado) e pela rádio, conhecido pelo PIFAS (julgo que sigla de Programa de Informação das Forças Armadas), um serviço radiofónico afeto à Chefia do Etado Maior das Forças Armadas.

Ora, seria na rádio que teria ensejo debitar Abril. De facto, nessa noite, soltei as amarras e com a rádio por minha conta, libertaria Zeca Afonso e outros cantautores, disco após disco. Deste modo, “venham mais cinco” e “traz outro amigo também” fariam companhia e gáudio até à madrugada, bem cervejada de “loiras” fresquinhas e mal dormida.

Os últimos meses, até ao regresso a casa, no início de Setembro, com a comissão de serviço já totalmente cumprida, decorreriam ciosos por notícias de jornais e aerogramas, com dias crescentemente ansiosos. No entanto, antes do regresso ao “puto”  (assim chamavam os locais africanos a Portugal), ainda nos deslocaríamos cerca de três meses para a tranquila área de Bafatá. Concretamente, instalei-me no destacamento de Cambaju, na fronteira nordeste com o Senegal, com o meu pelotão de infantaria, ao qual estava adido um outro de milícias africanos e um grupo de artilharia encarregue dos obuses.

 

Ora, aí começaria um outro Abril.

Com efeito, nessa cancela aberta e fronteiriça de arame farpado, por onde passavam os mercadores norte-africanos, a guerrilha abriu a raia ao futebol e aos combates à mesa armados de garfo e faca e por vezes à mão, em torno de uma gamela de arroz. E fluiriam as trocas comerciais: sabão por ananás, amendoim torrado ou galinhas por cerveja, etc.  Recordo até o harém de galinhas que recebi, quando ajudei a garotada no decurso do exame da 4ª. classe, na escolinha local, aquando da resolução de um problema de Matemática, que nunca fora o meu forte! Como também me lembro do prejuízo no bar, por fianças excessivas, aspeto nunca seria compreendido pelo esperto 1.º Sargento.

Situações de afetividade que passariam ainda por evacuações de doentes locais para o Hospital de Bafatá e infelizmente, pela evacuação mortal do furriel de informações por paludismo cerebral, um santo homem, natural de Fátima. Mas também cenas curiosas como a constituição de um grupo misto de segurança para proteger duas jornalistas femininas que dormiram no nosso “hotel”, antes da partida para Dacar, incumbidos de reportar o outro lado da guerra.

Tudo terminaria nos finais de Agosto com a passagem de testemunho, numa cerimónia militar digna e respeitosa do arreamento e hasteamento das bandeiras nacionais. Cumpria-se Abril no desígnio da descolonização, naquela clara e leda manhã, que simbolizava pacificamente a Revolução dos Cravos:

Aquela clara e leda madrugada

cheia toda de espera e liberdade

em Portugal com férrea vontade

quero que seja sempre cantada

 

Ela, pelo povo manifestada

em bandeiras de fraternidade

viu em festa ruas de igualdade

que nunca poderá ser olvidada

 

Ela viu lágrimas de alegria

dos olhos do povo derramadas 

que inundaram as ruas de euforia

 

Ela ouviu palavras conquistadas

de ordem, revolta e sabedoria

Em Abril floridas e semeadas …

 

De facto, não vivi essa madrugada na minha querida terra e berço da nação, mas senti-a com a mesma emoção de Camões quando escreveu “Aquela triste e leda madrugada” que serviu de pastiche a esta outra madrugada de Abril.

Porém, a Crónica da Guiné só terminaria de facto em Bafatá com o rebentamento do paiol e dos despojos da guerra. Recordo-me que passei quase uma semana a rebentar todo o material explosivo e sobrante, que ocasionou uma cratera lunar no terreno que lá ficou. Mas, infelizmente, também lá ficaram, as inúmeras minas e armadilhas que perigosamente instalámos no sudoeste e permaneceram por desmontar.

Vendeu-se ainda muita gasolina e rebentou-se também a bem recheada garrafeira existente, goelas abaixo. Desses tempos, ficou apenas a camaradagem, apesar dos aziagos 13 mortos,  mais tarde saudosamente relembrados em encontros de confraternização. Ficaram ainda na retina as belas imagens da floresta e savana africana, os seus grandes rios da “criminosa” pesca à granada; e a bolanha dos arrozais, usada como proteção nos ataques aos aquartelamentos, cheia de pegajosa lama cinzenta que conspurcava os camuflados.

Finalmente, em Setembro de 1974 consumar-se-ia o regresso a casa e a vivência de Abril em pleno, vivenciada nas organizações sociais de base, como a Associação de Moradores dos Remédios, no exercício do poder local e no jornalismo local como “O Povo de Guimarães”, assim como no associativismo e nas atividades docentes e culturais diversificadas.

Continuar Abril, feito e ainda por fazer, é tarefa que não acaba aqui nem agora …

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