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Ferreira de Castro – Fragmentos de um escritor

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ sábado, junho 29, 2024
© Direitos reservados
Creio que a memória de Ferreira de Castro, ressuscitado ou presentificado por qualquer outra forma panteística, ainda deambula pelas margens do Ave e pelas ruas de Guimarães.

No ano de 1923 passaram 125 anos do nascimento de Ferreira de Castro e no ano corrente de 1924 perpassam 50 anos da morte do escritor, ocorrida em 29 de Junho. Evocar o autor em Guimarães, concretamente nas Caldas das Taipas, em cujas termas veraneava, é plausivelmente um imperativo lógico para ressuscitar este importante autor do humanismo social, que nos legou romances preciosos como “Emigrantes” (1928),  “Terra Fria” (1934), ou  “A Lã e a Neve” ( 1947), entre muitas outras obras consagradas como “A Selva” (1930), que a UNESCO anunciou se encontrava entre os 10 romances mais lidos em todo o mundo.

Evocar ou ressuscitar o autor é portanto um respeitoso ditame que (lhe) é devido. De facto, como diria o poeta José Gomes Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Escritores, no decurso do elogio fúnebre sobre o escritor “quando um amigo morre, que nos resta senão tornar a ressuscitá-lo?” . Vamos tentar fazê-lo …

Na realidade, é no âmbito dos 50 anos do 25 de Abril que ainda mais se justifica recordar Ferreira de Castro, um exemplo e amigo da democracia e da liberdade, pelas quais  lutaria e acabaria por vivenciar efemeramente por escassos meses. Realmente, o escritor participaria  ainda no primeiro 1º. de Maio,  gritando “escrever é lutar! escrever é lutar!” , palavras de ordem que de  facto corresponderiam em perfeita coerência na sua a vida e a obra.

Efetivamente, Ferreira de Castro lutou ao longo da sua vida pela democracia e um mundo melhor e escreveu sobre esses valores. De tal forma intensa que o seu amigo Assis Esperança, em aditamento à certidão de óbito de acidente cardiovascular, afirma que foi devido a “uma congestão da revolução” , uma vez que  “também se pode morrer de alegria.”  

Com efeito, Ferreira de Castro viveu intensamente o período anterior ao 25 de Abril na luta política pela democracia e liberdade no contexto do Movimento Unitário Democrática, bem como no combate à censura em várias situações, designadamente a nível sindical, enquanto jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores (1962).

Ora, curiosamente, passam também neste ano em curso 50 anos que foi publicado, a título póstumo, o livro “Os Fragmentos”, que reúne alguns textos censurados. Com efeito, a obra reúne três contos de cariz jornalístico, bem como a novela/romance “O Intervalo” que aborda como questão central a luta pelos direitos humanos e dos trabalhadores no sentido de uma sociedade mais justa e igualitária, protagonizada pelo anarco-sindicalista Alexandre Novais, ocorrida inicialmente em Portugal e posteriormente em Espanha, no decurso da insurreição operária de 1933 e da guerra civil espanhola (1936-1939).

Porém, para além de Intervalo”, integram-se ainda nos  “Fragmentos” as narrativas “História da Velha Mina”, “Aldeia Nativa” e “Pórtico”, textos que refletem claramente muito do que é Ferreira de Castro e a sua cosmovisão. Narrativas que, como ele próprio escreveria na aludida obra, correspondem a um período transitório em que “a Humanidade está vivendo um intervalo entre o velho mundo que apodreceu e o novo mundo que nós desejamos e há de vir. É um intervalo terrível de grandes sofrimentos para muitos”.

Realmente, narrativas matriciais da mundivisão castriana, que nos faz pensar nos dias atuais minados pelas autocracias e outras “cias” e “ismos” conhecidos e deturpados.

Ora,  a narrativa “História da Velha Mina”, de matriz jornalística, que na  época do Estado Novo salazarista  seria para publicar no  jornal “O Século”, foi exatamente um dos textos proibidos pela censura. Uma narrativa que incidia sobre as condições de trabalho nas Minas de S. Domingos, que somente sairia das trevas e veria a luz do dia no pós-25 de Abril. Uma história que, como diria, “constitui um fragmento das cancelas cerradas perante a liberdade de pensamento que dificultam, já há muitos anos, os passos espontâneos dos escritores portugueses.”


A transcrição do excerto da “História da Velha Mina” é elucidativa sobre os motivos de intrusão da censura:

“Já o subdiretor da mina de onde se extraía cobre, um dos metais de que se faz dinheiro e na Bolsa de Londres se podia mesmo converter em oiro, entrava irrefletidamente nos paradoxos da sociedade imperante:

Acusa-nos também de pagar salários miseráveis. Não digo que sejam altos. Alguns mineiros ganham diariamente treze escudos, a maioria nove ou dez. Mas em Portugal todo os salários são baixos. E no Inverno, quando os lavradores já não precisam de braços, muitos homens vêm aqui oferecer-se para trabalhar por vinte e cinco tostões apenas (…)

- Sim, tem razão, as casas onde eles vivem não são boas. Mas eu conheço Portugal inteiro e, nas Beiras e em Trás-os-Montes, há muitas piores ainda. E a realidade é que, apesar de tudo, alguns dos homens que saem daqui, em busca de melhores condições de vida, regressam meses ou anos depois e até choram para que os admitamos novamente ao nosso serviço.

Fiquei a olhar, muito calado o inglês. E jamais pude esquecer o minuto noturno, tão denso de problemas de fumo, em que um grupo de mineiros me confirmou, mais tarde, no Sindicato, ser verdade o que ele me dissera, ser verdade que a miséria torna ilimitadas as humilhações dos exploradores perante os que não prosperariam sem eles.”  

 

Mas rememorar Ferreira de Castro é também voltar às Caldas das Taipas dos tempos idos. Com efeito, em 1999, no decurso das comemorações do centenário do seu nascimento, o escritor seria evocado na vila taipense, no decurso da  apresentação da "Fotobiografia de Ferreira de Castro" de autoria de Carlos Castro, numa cerimónia pública em que participaram, entre outros, o Presidente do Grupo Cultural e Recreativo de Ossela, José Carlos Rego e do Centro de Atividades Recreativas Taipense, Carlos Marques, bem como de Francisca Abreu, vereadora da Câmara Municipal de Guimarães, e J. Santos Simões, amigo e admirador de sempre e um dos responsáveis, em nome do Círculo de Arte e Recreio, pela implantação na vila termal, em 17 de Abril de 1971, de um busto do escritor.

Aliás, já em 1965 a vila das Taipas havia sido palco de manifestações de cariz cultural promovidas por Santos Simões, com a presença e Ferreira de Castro, inseridas no III Encontro dos Suplementos Literários e Paginas Culturais da Imprensa Regional. Outrossim, em 1993, aquando do XII Encontro de Imprensa Regional do Norte, promovido pelo Gabinete de Imprensa de Guimarães, presidido por Luís Caldas.

Ademais, em 2018, aquando dos 120 anos do nascimento do escritor, a Universidade do Minho organizou duas exposições evocativas sobre o escritor: uma em Braga, no campus de Gualtar e outra em Guimarães, no campus de Azurém, focada na obra “As Maravilhas Artísticas  do Mundo”. Igualmente, em Abril de 2021, seria apresentado nas Caldas das Taipas o livro “Ferreira de Castro e(m) Guimarães, de autoria de Álvaro Nunes e Fernando Capela Miguel, com ilustrações de J. Salgado Almeida.

Com efeito, as Caldas das Taipas seriam com efeito um lugar de eleição do escritor como o comprova o artigo publicado em 29 de Setembro de 1963, sob o título “A terra onde a lua fala”. Testemunhos emotivos que uma carta datada de 1971, após a implantação do seu busto nas Taipas corrobora:

 

“Creio que poucas coisas me poderiam comover tão grandemente. E isto porque me sinto ligado às Taipas pelos momentos de poesia que me tem concedido, pelo trabalho que ali tenho realizado em paz, pelo meu amor à natureza, aos seus caminhos populares, às suas árvores amigas, às margens tão líricas do Ave e ao encantamento do seu lar. E isto sem falar dos seus camponeses, às portas dos quais gosto imenso de conversar com eles ao findar das longas tardes de Verão. Horas gratas que já evoquei, aliás, numa mensagem. (…)

E que dizer de Guimarães, que é uma das três ou quatro cidades mais preciosas e sedutoras de Portugal.”

 

Guimarães tem também o escritor perpetuado na sua toponímia, na rua homónima, na zona das Quintãs, na freguesia de Azurém.

Creio que a memória de Ferreira de Castro, ressuscitado ou presentificado por qualquer outra forma panteística, ainda deambula pelas margens do Ave e pelas ruas de Guimarães para a frequência das tertúlias, jogo do dominó ou revelação das suas fotos no Amílcar.

Como sói dizer-se os homens superiores não morrem, apenas mudam de morada …

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