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Gualterianas

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ quinta-feira, agosto 01, 2024
© Direitos reservados
Sobreviventes de guerras e epidemias de novo as Gualterianas estarão na rua, bem como a sua Marcha com os seus belos carros alegóricos e crítica social dos números vivos.

Remontam as origens onomásticas das Gualterianas ao século XIII, mais precisamente a 1233, data em que se crê que S. Gualter se teria instalado na encosta do Monte de Santa Catarina “junto às águas de um regato”, na Fonte Santa, em Urgezes. Um santo que passaria a ser venerado pelo povo, em especial a partir da terrível epidemia que aconteceu nessa época e concomitantes notícias dos seus milagres. Aliás seria o povo que o canonizaria como santo, uma vez que nunca seria reconhecida a sua santificação por parte da Igreja.

Todavia, só mais tarde, no reinado de D. Afonso V, Guimarães passaria a organizar uma feira franca anual que seria batizada Feira de S. Gualter, por coincidir com os festejos que então se faziam ao santo. Uma feira franca, que data de 1452 e se realizaria entre 7 e 17 de Agosto.

Porém, posteriormente, Já no reinado de D. Manuel, a Feira de S. Gualter passaria a realizar-se entre 15 e 25 de Agosto, por solicitação dos procuradores vimaranenses, apresentada nas Cortes. Contudo, só a partir de 1577, a devoção ao santo passaria a fixar-se no primeiro domingo de agosto;  e neste mesmo período, é fundada a Irmandade de S. Gualter, bem como é erguida uma capela na Igreja de S. Francisco, que seria demolida em 1750.

No entanto, só em 1906 as Gualterianas surgem de facto como festas da cidade de forma organizada, parcialmente semelhantes às que ocorrem atualmente. Com efeito, até aí, a Feira de S. Gualter, limitava-se apenas a uma feira de cavalgaduras, barracas de quinquilharias, rifas, curiosidades e petiscadas, entre as quais sobressaía a vitela assada, numa espécie de arraial popular que durava três dias. Mais fortes, no século XIX, seriam até as festas de S. João.

Todavia, em 1906, a Associação Comercial toma as rédeas da organização de umas festas da cidade, que há muito vinham sendo reclamadas pela população vimaranense.

Deste modo, é constituída uma comissão para recolha de fundos e dividem-se tarefas. Assim,

Abel Cardoso e José Luís de Pina, artistas consagrados, encarregam-se dos projetos de decoração das festas, enquanto a execução das iluminações é entregue a Emiliano Abreu. Por sua vez, no Proposto, trabalha-se afincadamente na construção de uma Praça de Touros e

prepara-se o Regulamento da Feira de Gado, que passa a realizar-se em dois dias separados: uma para gado bovino e outra para gado cavalar.

Ato contínuo, galvanizados pelo empreendimento festivo surge nessa mesma altura o Hino da Cidade, composto musicalmente por Aníbal Vasco Leão, com letra do Padre Gaspar Roriz e reivindicam-se comboios extraordinários com tarifas reduzidas com as cidades vizinhas, para atrair forasteiros.

Oh! Guimarães, teu progresso, tua vida/é toda a nossa aspiração”, começaria não só a ser cantado, como também pragmaticamente a avançaria sobre os carris, que já cá haviam chegado em 14 de Abril de 1884, o ano de ouro de Guimarães.

Assim, em 1906 despontaria a festa, com ornamentações, bandas filarmónicas e animações variadas! Entre estas, sobressairia um cortejo com balões venezianos iluminados e fogo-de-bengala multicolorido, organizado pelos empregados do comércio. E no Toural destaca-se um majestoso arco árabe, desenhado por Abel Cardoso, que dá as boas-vindas aos visitantes.

Era o começo, das Festas Gualterinas, no seu esplendor, que se manteriam até hoje, apenas interrompidas ou minimizadas em alguns períodos difíceis do país e do mundo.

Entretanto, em 1907, sairia primeira vez para a rua o cortejo denominado Marcha Milanesa, depois chamada Marcha Luminosa e mais tarde Marcha Gualteriana. Um desfile brilhante de carros alegóricos, que sob a orientação do Padre Gaspar Roriz se teria inspirado num cortejo luminoso presenciado em Milão e que contaria com a prestimosa a colaboração os “caixeiros”, ou empregados do comércio.

Igualmente, em 1909 assiste-se pela primeira vez ao desfile do Cortejo de Fores, que ficaria conhecido por Batalha de Flores, a que se ajuntaria o Cortejo do Linho; e, em 1910,as festas contariam ainda com a realização de uma exposição agrícola e industrial que enriqueceriam o seu programa.

Ademais, em 1911, as festas coincidem com as celebrações do 8º. Centenário de D. Afonso Henriques, altura em que a sua estátua seria transferida do terreiro de S. Francisco para o Toural, continuando com toda a força durante a década, apenas restringidas às feiras francas nos anos entre 1917 e 1920, devido à I Grande Guerra Mundial e pandemia da gripe pneumónica.

Entrementes, de novo há dificuldades, na década de 40, por causa da II Grande Guerra Mundial, que as reduzem praticamente às feiras francas. Todavia, as festas ressurgem com vigor em 1947, apesar de algumas contrariedades. De facto, nesse ano, a Praça de Toiros seria destruída por um fatídico incêndio. No entanto, em vez de baixarem braços resignadamente, os vimaranenses constroem solidariamente uma nova tourada em poucos dias, numa iniciativa que ficaria imortalizada como o “Milagre de Guimarães” e seria motivo de notícia e orgulho a nível nacional pela perseverança e bairrismo demonstrados. Uma façanha hercúlea e titânica, que motivaria o “épico” soneto do poeta vimaranense Delfim de Guimarães,  “A nossa gente é assim”:

 

“É gente que se move e não quer peias …
Da fidalguia aos rudes cutileiros
Há sangue a referver nas suas veias
De impávidos e célebres guerreiros …
 

Não adormece ao canto das sereias …
Gente que não atende a mesureiros
Que abominou, de sempre, as verborreias
Que arengadores de feira aventureiros

 

A nossa gente é assim … É orgulhosa.
Se lhe ferem a alma, é assombrosa
Na sua desafronta (sem defesa …)

 

É a raça que perdura inalterável
Do Rei Conquistador e formidável
Que nos doou a Pátria Portuguesa”.

 

As festas teriam ainda um ponto alto no ano de 1951, quando nasce o movimento “Pró-Gualteriano que assumem não só os festejos do ano como também  “ a primeira fase das comemorações do primeiro centenário da elevação de Guimarães à categoria de cidade”. Data também desse período o poema galvanizador de Delfim de Guimarães  “Todos por Guimarães”,  publicado no programa das Festas Gualterianas de 1951:

 

“Todos por Guimarães, por Guimarães avante!
E este o nosso brado altivo de labuta.
Todos sejamos um ciclópico gigante
Que nunca se abateu em temerosa luta.

 

Todos por Guimarães! Aqui ninguém recua!
Troveja D. Afonso erguendo ao alto a espada …
Todos, todos iguais, a gente nobre, a rua,
O que tem tudo, tudo, e o Zé-Ninguém sem nada …

 

Todos por Guimarães, impõe o Mestre Gil,
Que não esquece o Berço embora este o ‘squeça …
- Renegarei  um Auto o conterrâneo vil
Que a nossa Terra-Mãe d’ amor não estremeça …

 

Todos por Guimarães, é a voz do Trovador,
Do menestrel de antanho, o vale sonoroso,
Ouve-se o mesmo grito, ardente de fervor,
De Gonçalves patrício, o célebre Engenhoso.

 

Todos por Guimarães, S. Dâmaso incita
Do seu trono papal com gesto soberano
Martins Sarmento, o Sábio, a sua dextra agita
De apoio e saudação ao Papa Lusitano.

 

Todos por Guimarães, Francisco Agra e Meira,
Alberto Sampaio, Abade de Tagilde.
Pregam a união de toda a grei ordeira,
Dos homens de nobreza ao povo rude, humilde.

 

Todos por Guimarães, em coro João de Melo,
Padre Gaspar Roriz e tantas almas puras,
Querem o laço augusto. O nó sagrado e belo,
Que eleve o Berço amado às máximas alturas.

 

Todos por Guimarães! é o grito de ontem, de hoje,
Que ele ecoe estrondoso e vá de vale em serra.
Aqui ninguém deserta e nem recua ou foge.
Todos por Guimarães que é a nossa excelsa Terra.”

(…)

 

Com efeito, em 1953 os festejos coincidiram com as comemorações do milenário da cidade, tendo o então Presidente da Câmara, Augusto Castro Ferreira, trazido até nós  o Presidente da República, general Craveiro Lopes. Umas festas com toda a pompa e circunstância que coincidiria ainda a evocação do “Tratado de Tagilde”, em 10 de Julho de 1372, bem como com a Exposição Industrial e Agrícola, que na circunstância inaugurativa mereceria por parte do presidente da comissão de festas, António José Pereira Rodrigues, estes oportunos  e  frontais recados:

 

A cidade de Guimarães, cada vez maior entre as maiores, vem de tempos a esta parte perdendo muitas daquelas regalias e valores que eram o seu orgulho, agora apenas recordações pungentes dum passado-presente, que amanhã-hoje, com redobrado querer, reconquistará e ultrapassará.

Reivindicações e lamentos que enumeraria:

O desaparecimento da unidade militar (Regimento de Infantaria 20), a transferência dos seminários, a extinção da Colegiada de Guimarães; a perda de prestígio do Liceu de Guimarães e a falta de acesso dos filhos operária a escolas técnicas capazes de os preparar para as tarefas produtivas, formação essa só acessível a uns quantos privilegiados.”

     

 Nesta década seria ainda de destacar em 1956, a celebração das bodas de Ouro das Festas Gualterianas e no ano seguinte a constituição da Comissão “Pró- Casa da Marcha e a criação do “Teatro dos Caixeiros” , visando a angariação de recursos financeiros à construção da Casa da Marcha. Seguem-se os tempos renovadores de Abílio Gouveia e nos inícios dos anos 60 a anulação do programa das Festas Gualterianas, decorrente do eclodir da guerra colonial, em Angola.

As festas retornam com vigor em 1963 e no ano seguinte passam para a alçada da Associação Cultural e Recreativa “Convívio” . Seguem ao longo dos anos novos eventos e protagonistas, entre os quais Antonino Dias de Castro, presidente da Irmandade de S. Gualter, que em 1973 teria  a seu lado como principal convidado o Presidente da República,  almirante Américo Tomás.

 Como é óbvio, a Revolução dos Cravos alteraria sensivelmente a visão das festas, com Santos Simões e António Emílio Abreu a dar-lhe um cunho mais cultural e socioeconómico, logo nesse primeiro ano pós 25 de Abril de 1974. Porém, nas décadas subsequentes de 70/80 salientar-se-ia  ainda a falta do cortejo da Marcha Gualteriana em 1978, 1982 e 1988 e em 1979, bem como a aposta no  seu desfile prévio,  no interior do estádio, que não se repetiria.

No dealbar de novo milénio, um ponto alto se registaria ainda com as comemorações do centenário da Marcha Gualteriana .

 Entrementes, no início da década 20 deste século XXI, cerca de 100 anos depois da broncopneumonia, uma nova pandemia denominada Covid-19 grassaria e impediria a realização (plena) das Festas Gualterianas.

Curiosamente um culto ao santo que começaria séculos atrás pelos seus milagres contra uma epidemia e voltaria a ser superado pelo milagre das vacinas.

Sobreviventes de guerras e epidemias de novo as Gualterianas estarão na rua, bem como a sua Marcha com os seus belos carros alegóricos e crítica social dos números vivos. Carros que, segundo consta, entre outros, evocarão o 25 de Abril e os 500 anos do nascimento de Camões, homenagearão coletividades emblemáticas como os escuteiros, que comemoram o seu centenário e a UNAGUI nos seus 30 anos, bem como a cidade, mais uma vez consagrada nos Couros com património mundial e recordada na sua gente ilustre como  o multifacetado José Luís de Pina , nos 150 anos do seu nascimento.

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