In memoriam de José Cardoso Pires
O dia 2 de Outubro assinala o centenário do nascimento de JOSÉ Augusto Neves CARDOSO PIRES (JCP), nascido em S. João do Peso ((Vilado Rei /Castelo Branco), em 1926 e falecido há 27 anos, neste mesmo mês, no ano de 1998. Nome conceituado da literatura portuguesa, JCP é considerado pela “História da Literatura Portuguesa” de A.J. Saraiva/Óscar Lopes “talvez o melhor prosador narrativo atual” e seria, de acordo com Célia Vieira e Isabel Rio Novo “um dos romancistas portugueses que com mais finura usou a ironia e o humor enquanto instrumentos eficazes de crítica social (...) pela riqueza expressiva patenteada de introduzir na escrita, de forma natural, vários registos de língua e até gírias, pela apreensão de certos tipos sociais (sobretudo aqueles que integravam a realidade histórica do salazarismo). ”
De facto, enfeudado à segunda geração neorrealista, menos eufórica e utópica, mas em contrapartida mais desencantada e angustiada, o escritor manteria ao longo dos tempos, quer na escrita quer na política, uma postura combativa e comprometida, porventura alicerçada na sua idiossincrasia e filiação no Partido Comunista, do qual se viria a afastar após o 25 de Abril de 1974.
Efetivamente, iniciado na escrita como contista, no final dos anos 40 e princípio da década de 50, JCP estrear-se-ia na ficção com “Caminheiros e Outros Contos” e “Histórias de Amor”, ambos apreendidos pela censura, que lhe valeriam primeira detenção repressiva. Narrativas a que regressaria nas décadas seguintes com a refundição dos seus contos em “Jogos de Azar” (1963) e, posteriormente, “O Burro de pé” (1979) e “República dos Corvos” (1988), que obviamente, e em paralelo com outra produção, se estenderiam à novelística, com “O Anjo Ancorado” (1958) e a uma plêiade de géneros literários como o romance, o teatro, o ensaio e as memórias, as crónicas e a sátira, como “Dinossauro Excelentíssimo”, centrada na figura de Salazar.
Porém, este multifacetado escritor, cuja vida passaria desde criança pela capital, como aluno do Liceu Camões e depois pela Faculdade de Ciências de Lisboa para cursar Matemáticas Superiores, que nunca terminaria, seria posteriormente forçado a abandonar de forma compulsiva a formação de praticante de piloto na Marinha Mercante “suspeito de indisciplina e detido em viagem do navio Niassa”. Com efeito, apesar de ser filho de peixe, isto é, descendente dum oficial da marinha, JCP não saberia nadar nestas águas, pelo que preferiria, após o serviço militar, singrar por profissões mais terrenas e tão diversas como como comercial e intérprete, bem como redator e diretor editorial, vivências e experiências comprovativas da sua versatilidade pessoal. Competência e aptidões que o levariam, entre 1969 e 1971 à docência de literatura portuguesa e brasileira no King’s College, na Universidade de Londres e à escrita em diversas publicações periódicas, em especial no “Diário Popular”, no qual redige interessantes crónicas, posteriormente reunidas sob o título “Os Lugares Comuns”. Crónicas que seriam igualmente compiladas noutros títulos como “Cardoso Pires por Cardoso Pires” e “O Cavalo do Diabo”.
Ademais, JCP representaria ainda Portugal em vários eventos culturais e literários internacionais e promoção de atividades de resistência cultural à repressão, mas sobretudo legar-nos-ia uma obra de excelência, traduzida em imensas línguas e amplamente premiada, quer a nível nacional quer internacional. Trabalhos que seriam ainda adaptados ao cinema, como os romances “A Balada da Praia dos Cães” e “O Delfim”, bem como a sua biografia, documentada no filme “Sombras Brancas”.
Paralelamente, sobressaem ainda no legado de JCP obras de ensaio e memórias, em especial “Cartilha do Marialva” (1960), “E agora, José?” (1977) e “De Profundis, Valsa Lenta” (1997). Esta última, uma narrativa de profunda reflexão sobre a existência humana, a vida e a morte, em tom de prosa poética, que teve por base o acidente vascular cerebral e o estado de coma, que vitimaria o escritor, a cuja vivência sobreviveria para nos contar intensamente.
No entanto, é no romance que JCP mais se destaca, em especial com “O Hóspede de Job” (1963), “O Delfim” (1968), “A Balada da Praia dos Cães” (1982) e “Alexandra Alpha” (1987).
Porém, “O Delfim” é porventura a sua obra-prima. Um romance escrito por um narrador-detetive, em trama pretensamente policial, que centrado na exploração de uma lagoa na Gafeira, identifica claramente este microcosmo com um macro-espaço maior: Portugal. No fundo, o retrato sociológico de um país da década de 60, ainda dominado pelo engenheiro Tomás Palma Bravo, também conhecido por “Delfim” e/ou “Infante”, que como dono da lagoa da Gafeira corporiza a aristocracia rural, materializada na sua forte associação com oc regime salazarista. Um delfim que após a morte da esposa e do criado mulato, em circunstâncias enigmáticas, desaparece, propiciando a “revolução” e provocando a socialização da lagoa e subsequentemente o advento de uma realidade nova, simbolicamente edificada na cooperativa dos noventa e oito.
Obviamente, um romance marcado por “uma oposição clara ao discurso totalizante”, como afirma Alexande Montaury, mas que exige ao leitor uma apurada atenção e perceção para conseguir recuperar o seu “contexto cifrado” e a “história implícita”
Com efeito, como escreveria Eduardo Lourenço no diário “Público” de 27 de Outubro de 1998, uma obra e “homem, nem de certezas, nem de incertezas, nem olímpico nem angustiado; o autor do Delfim investiu-se, como uma espécie de predestinação, no papel de detetive por conta própria, apostado na descoberta de enigmas ou crimes, secularmente sepultados, raiz e matriz de um tempo sonâmbulo (a frase é dele) que lhe coube viver. Viver e reviver em contos e romances inseparavelmente realistas e alegóricos, onde em quem os ler respirará um pouco aquele ar rarefeito dum passado português que foi o da sua geração e, eminentemente, o seu.”
Salientaríamos ainda, na mesma esteira sócio-política, o texto dramático “O Render dos Heróis” (1960), considerada “uma narrativa dramática em três pontos e uma apoteose grotesca”. Uma peça teatral que se focaliza em acontecimentos ocorridos no Alto Minho, em 1846, no reinado de D. Maria II contextualizados no Portugal da ditadura dos “Cabrais” e na revolta de Maria da Fonte. Uma peça que se insere no âmbito da dramaturgia de inspiração brechtiana, que ficciona e transpõe por analogia o levantamento de Maria da Fonte para os problemas sociais do tempo do autor, concretamente a década 60 do salazarismo, que esta “Xácara da visita à rainha” dilucida e denuncia criticamente:
“Aprende, Rainha, aprende
Mede agora o teu poder,
Tu dum lado o povo doutro
Qual dos dois há-de vencer.
Se tens armas, não nos temas
Se as não tens, vai procurá-las
Ao brasão dos maus Cabrais
Que tens nele três punhais.”
Em súmula, entre outros livros do citado autor, duas obras a (re)ler, rever e a refletir, uma vez que no próximo ano de 2026 perpassam 100 anos sobre o golpe militar do 28 de Maio de 1928 e a implantação da ditadura, vigente até ao 25 de Abril de 1974. Textos literários que nos chamam ainda a atenção para as lições históricas do passado e por analogia para o momento presente, no qual se pressentem derivas populistas e radicais, que aspiram ao regresso anti-democrático.