Memórias
Março é um mês primaveril e de florescência de diversas efemérides: o Dia Internacional da Mulher (8), o Dia Mundial da Poesia (21), o Dia Mundial do Teatro (27) e até, neste ano de 2025, o tempo da folia carnavalesca. ´
Assim, não faltam panos para mangas para uma croniqueta. Porém, dois eventos literários se destacam, centrados em dois escritores ligados a Guimarães e nascidos em Março: Raul Brandão, (1867-1930), nascido em 12 de Março e autor de “Memórias II”, publicado precisamente há 100 anos; e Camilo Castelo Branco (1825-1890), nascido em 16 de Março, já lá vão 200 anos.
Ademais, Raul Brandão admirava Camilo, que lhe dedica palavras de compreensível afeto. Com efeito, em “Memórias II”, no texto “Visita a Seide”, datado de Novembro de 1914, é elucidativo desta ligação inteligível e indulgente:
(…) A casa está desabitada. Nem um vestígio de ternura neste buraco, donde ele saía de combinações de dramas e de combinações de dinheiro, para correr a cavalo as batotas de Famalicão e de Guimarães. Aqui escreveu alguns dos seus melhores livros, os “Serões”, as “Novelas do Minho”, a “Brasileira de Prazins”. Aqui maquinou o rapto da órfã, que veio a acabar com olhos de espanto entre seres que não podia compreender nem amar, Camilo, D. Ana, o doido. Aqui cumpriu a condenação perpétua de escrever, de escrever sempre, com uma pala sobre os olhos, contando o seu drama e os dramas alheios, passando sem transição das lágrimas para o riso e do riso para o sarcasmo até à última hora e até à última gota. Estou a vê-lo entrar por aquela porta dentro – e tenho medo desta grande figura dolorida. Mete-me medo mesmo depois de morto. Vejo diante dos meus olhos o fantasma quase cego, com a boca amarga, só osso e pele, só osso e desespero. (…)
A sua vida está de tal maneira entranhada na sua obra que não há depará-las. Desde a fuga à tia Caldeirão, às paixões, ao cárcere – duas vezes preso – até à tragédia de Seide é sempre o mesmo drama, que, no isolamento da aldeia, chega ao acume da tragédia. É ali que a sua alma se debate na escuridão cerrada. À dor física junta-se a dor moral (…)
Em 1875 o seu mal agrava-se, o fantasma não o deixa, não para um momento. Vai de Seide para a Póvoa, da Póvoa para Bragança, para Guimarães, para o Porto, sem encontrar sossego ou descanso (…)”
Camilo “ria-se do fantasma do fantasma – e da sua alma, da tragicomédia da vida. Quando o seu mundo moral era uma derrocada, vinha-lhe o protesto em golfadas à boca, com sabor a fel (…) Depois fugia. Fugia, talvez, ao fantasma que não o largava nunca – Judeu Errante amaurótico, num mundo de acaso sem a luz interior a alumiá-lo (…)
Era tempo. Já ninguém poderia aturar aquele farrapo dorido. E nem ele se podia aturar a si mesmo. Quando se matou houve talvez em roda um suspiro de alívio. A própria natureza se sentiu apaziguada.”
Uma visão genérica da vida de Camilo e alguns dos seus dramas, nomeadamente a sua orfandade e subsequente deslocação para Vila Real aos (des)cuidados da tia paterna Rita Emília (a tia Caldeirão), as suas prisões em especial aquando da acusação de adultério por Pinheiro Alves, marido de Ana Plácido, os raptos amorosos como o da órfã a abastada Maria Isabel Macedo, esposa do filho Nuno e os desgostos, como a loucura do filho Jorge e estroinice do filho Nuno, que culminariam na cegueira e suicídio do escritor.
No entanto, a obra “Memórias II”, o segundo volume de um conjunto de três tomos publicados respetivamente nos anos de 1919,1925 e 1933, reportando fundamentalmente os tempos da I República, é sobretudo uma obra preciosa de foro histórico e de reflexões filosóficas e expressionistas, repleta de recordações culturais e de amizades e diversas, bem como memórias confessionais e pessoais, que o autor dedica ao grande amigo Teixeira de Pascoaes.
É o caso, por exemplo, do belo texto “O Silêncio e o lume”, datado de Dezembro de 1924.
Memórias reflexivas e confessionais que evocam nostalgicamente os antepassados, as profundas relações de amor entre Raul Brandão e a esposa Maria Angelina, bem como a construção da Casa do Alto, a tebaida do escritor em Nespereira, e a gentes humildes como “os jornaleiros, cavadores e pedreiros que não ganham para comer”. Outrossim a mulher, elogiada na perspetiva da época:
“Qual é a força extraordinária que possuis? (…) A mulher portuguesa comunica ao lar a ternura com que os pássaros aquecem o ninho. Sua vida dá luz, para alumiar os outros (…) Nas mãos das mulheres até as coisas vulgares que se fazem na aldeia, cozer o pão, lançar a teia – assumem carácter sagrado. Elas passam desconhecidas e dispõem dum poder extraordinário. Mantêm a vida ordenada com um sorriso tímido. A mulher está mais perto que nós da natureza e de Deus.” (…)
Mulher que assume na esposa Maria Angelina a expressão máxima do afeto: “ cada ano que passa é um laço que nos prende e quanto melhor conheço a tua alma, mais me purifico ao seu contacto. Não só fazes parte do meu ser, mas da minha consciência. Chego às vezes a supor que és tu a minha consciência”.
No entanto, “Memórias II” para além dos aspetos de maior ou menor foro intimista, faculta-nos ainda impressões sobre os primórdios da revolução republicana, que sob o título “O meu diário” abordam factos, informações históricas e ideias marcantes, balizados de forma diarística a partir de Outubro de 1910. Deste modo, num compromisso híbrido entre o testemunho, a crónica e as meditações e juízos do escritor, perpassam fontes documentais diversas como entrevistas, depoimentos, as vozes dos outros, relatos, reproduções de opúsculos, bem como artigos de imprensa, editais e comunicados, que segundo o escritor “ajudam a reconstituir a atmosfera de uma época” e a perspetivar os acontecimentos dramáticos da coisa pública desses atribulados dias.
Memórias que passam ainda por outras figuras da época como Teófilo Braga e Guerra Junqueiro, entre outros, assim como algumas vivências pessoais no Colégio de S. Carlos, no Porto e na Escola do Exército, que o memorialista frequentaria e suscitaria fortes críticas ao ensino da época. Sentido crítico que se estende ainda aos costumes, mas que também contam histórias singelas e comoventes de tipos como o senhor Custódio, o relojoeiro Girôd e o senhor Domingos, das bandas de Nespereira, conhecido pelo Ai-Jesus.
Vai longa esta croniqueta, que impede falemos especificamente de Camilo neste texto. Porém, prometemos tratá-lo seguidamente…
Até lá, um boa oportunidade para (re)ler Raul Brandão e/ou vivenciar o Festival Húmus – Festival Literário de Guimarães, bem como a Feira da Época e outras iniciativas a levar a cabo em Nespereira.
Voltaremos com Camilo …