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O Santo Antero

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ sábado, julho 03, 2021
© Direitos reservados
Coimbra marca também a solidificação de muitas relações amigáveis de Antero de Quental, entre as quais a amizade com o ilustre historiador vimaranense Alberto Sampaio.

Originário dos Açores, proveniente duma família profundamente religiosa, Antero Tarquínio de Quental nasceu em 18 de Abril de 1842, em Ponta Delgada, embora cedo, ainda pré-adolescente tenha vindo para Lisboa. Na capital, frequentaria então o Colégio do Pórtico (de Feliciano de Castilho) até cerca dos 16 anos, altura em que se matricularia na Universidade de Coimbra e se formaria em Direito.

De facto, Coimbra marca indelevelmente o início da sua vida e formação, como ele próprio confessa: “não foi o estudo e Direito que me interessou e absorveu durante aqueles anos, tendo sido e ficado um insignificante legista (….) O facto importante, da minha vida, durante aqueles anos, e provavelmente o mais decisivo dela, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu (,,,)”.

Efetivamente, nesses anos entre 1858 a 1864, Antero assume-se como uma figura influente no meio estudantil coimbrão, quer participando em várias manifestações académicas, quer tomando contacto e advogando novas ideias e correntes europeias, como o socialismo utópico de Proudhon, o positivismo de Comte, a que acrescentaria o hegelianismo e o darwinismo, bem como as doutrinas de Taine, Michelet e o romantismo social de Vítor Hugo.

Assim, nos conta Eça de Queirós, in “Notas Contemporâneas”:

 

“Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesse tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava:

                                          … aos transcendentes recantos

                                          Aonde o bom Deus se mete,

                                          Sem fazer caso dos Santos

                                          A conversar com Garrett!

Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo:

É o Antero!..

(…).

Antero era não só um chefe mas um Messias. Tudo nele o marcava para essa missão (…) era um génio e era um Santo”.

 

Um homem que Oliveira Martins em “Prefácio a Sonetos”, consideraria fundamentalmente bom, de tal forma que “se tivesse vivido no século VI, seria um dos companheiros de S. Bento e S. Francisco de Assis. No século XIX é um excêntrico, mas desse feitio de excentricidade que é indispensável, porque a todos os tempos foram indispensáveis os hereges, que hoje se chama dissidentes.

Com efeito, desde muito cedo Antero mostrou a sua dissidência e irreverência. A “Sociedade do Raio”, associação secreta de cariz conspirativo, que fundara com o objetivo de destituir o autoritário reitor Basílio Alberto, seria com efeito um das suas iniciais ações de revolta, da qual os irmãos vimaranenses José Sampaio e Alberto Sampaio também fariam parte.

Ademais, com Teófilo Braga, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro, entre outros, que mais tarde ficariam conhecidos pela Geração de 70, este grupo de jovens intelectuais e rebeldes emergiriam também no âmbito da contestação literária e intuitos reformistas. Com efeito, ao assumirem uma postura de contestação aos excessos do ultrarromantismo de uma plêiade de escritores sob a égide de António Feliciano de Castilho, despoletariam a “Questão Coimbrã”, ou do “Bom Senso e Bom Gosto”, que oporia uma cosmovisão diferenciadas intergrupal, quer na literatura quer no seu papel social, neste país.

Despontava assim, por parte desta geração coimbrã, um horizonte socio-literário de um novo lirismo social, humanitário e crítico, que de modo mais lato, apontava também a novos conceitos políticos, históricos e filosóficos revolucionários e inovadores. Efetivamente, embora aparentemente literária, a “Questão Coimbrã” denunciava também incompatibilidades mais profundas na vida social portuguesa.

 

Lisboa e os 150 anos das conferências do Casino

Após Coimbra, Lisboa, para onde regressa após alguns meses em Paris e uma curta viagem à América do Norte, em 1868, constituiu uma segunda etapa da vida do poeta-filósofo, que já em 1865 publicara as “Odes Modernas”, poesias de romantismo social, acompanhadas de uma “Nota sobre a Missão Revolucionária da Poesia”

Com efeito, em Lisboa, Antero reencontra os seus antigos condiscípulos de Coimbra e transforma a sua casa no Cenáculo, local onde se discutiam as novas ideologias europeias e se descobrem novos poetas como Baudelaire, Nerval, entre outros. E seria aí, no seio dessas tertúlias irreverentes que nasceria o poeta satânico e dândi Carlos Fradique Mendes e germinariam as Conferências do Casino, iniciadas em 1871.

De facto, em Maio de 1871, já lá vão 150 anos, seria publicado no jornal Revolução de Setembro o manifesto-programa das chamadas Conferências Democráticas, que vão ter início a 22 de Maio numa sala alugada do Casino Lisbonense e como tal ficariam conhecidas por Conferências do Casino.

Cinco conferências cujo manifesto apontava, entre outros pontos, para as preocupações com as transformação social, moral e política dos povos, tendo como objetivos concretos “ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade”. Deste modo, como preconizava o programa-manifesto visava-se “agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência Moderna e estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa”.

Com efeito, assinado por 12 intelectuais portugueses como Antero de Quental, Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga e Teófilo Braga, entre outros, as Conferências do Casino lançariam um movimento de ideias novas e revolucionárias, tendo como base a leitura de Proudhon. Marx e Engels. Como é óbvio, um movimento que para além da expressão do realismo artístico como novo ideal de vida e a crença no progresso das sociedades, vislumbrava horizontes mais longínquos e vastos, como “o estudo das ideias que devem presidir a uma revolução, de modo que para ela a consciência pública se prepare e ilumine (…)”

Cinco conferências, entre as quais sobressairiam Eça de Queirós e Antero. Eça com um novo grito de revolta contra as tradições literárias vigentes, em especial ao romantismo, lançando as bases do realismo; e Antero com a sua preleção e prosa polemista intitulada “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” que seria porventura e globalmente a mais incisiva. De facto, apontando o dedo acusador ao catolicismo posterior ao Concílio de Trento que desvirtuara a essência do cristianismo, bem como à monarquia absoluta, que coartava as liberdades; e ainda indigitando as conquistas ultramarinas como fatores de hábitos funestos de ociosidade e grandeza, Antero identificaria os três males ibéricos e as causas da decadência. Assim, em alternativa, proporia a consciência livre, a ciência, a filosofia e a crença na renovação da Humanidade, a federação republicana com larga democratização da vida municipal e a transição para o novo mundo industrial do socialismo, a que pertenceria o futuro.

Era o seu conceito de Revolução que, conforme expressaria em síntese na sua conferência, passava pelo cristianismo:

“O Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno”.

Realmente, como afirmaria Eça nas Farpas, “era a primeira vez que a Revolução sob a sua forma científica tinha em Portugal a sua tribuna”, sob os auspícios das novas ideias e os acontecimentos de Paris, nomeadamente a proclamação da Comuna em 18 de Março de 1871.

Efetivamente, cinco conferências que abalariam as instituições vigentes da época, mas que acabariam de ser encerradas por portaria de 26 de Junho de 1871, pois, como na altura se justificou, “procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado (…) e ofendem clara e diretamente as leis do reino e o código fundamental da monarquia”.

Antero viveria então nesse período a sua fase política mais intensa que passaria ainda pela fundação da Fraternidade Operária com José Fontana e Batalha Reis e comprometia-se inclusive com a organização do proletariado, aceitando uma candidatura socialista e aderindo à “Internacional”. Nessa altura, funda ainda o jornal “Pensamento Social” e publica a obra de poesia “Primaveras Românticas”, bem como as “Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa”, no âmbito da prosa filosófica

 

Antero e Alberto Sampaio

Coimbra marca também a solidificação de muitas relações amigáveis de Antero, entre as quais a amizade com o ilustre historiador vimaranense Alberto Sampaio. Com efeito, como conta Ana Maria Martins na Revista de Guimarães de 1992, no seu artigo “Antero de Quental e Alberto Sampaio – A amizade na diferença”, Antero e Alberto Sampaio eram muito diferentes um do outro, a despeito da amizade que os ligava:

 Em Coimbra, é certo, vamos encontrá-los juntos em diversas ocasiões: ambos presos por desordens de caloiros; presentes na pequena revolta vitoriosa da Sala dos Capelos, com a assinatura conjunta no Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à Questão Ilustrada do País, e no êxodo para o Porto durante a Rolinada”.

(A Rolinada deriva do apelido Rolim, 1º. Duque de Loulé e chefe do governo na altura, designando os incidentes que abalaram a Universidade de Coimbra, ocupada por tropas e que culminaria com o abandono da cidade por parte de vários estudantes, que se considerariam desterrados para o Porto).

Porém, para além da luta estudantil, tudo leva a crer que a amizade entre ambos tenha também passado pela mesa. Isso mesmo nos narra Emília Nova Faria, sobrinha trineta de Alberto Sampaio no livro infanto-juvenil “História de Aberto”:

 

“ O primeiro amigo que fizemos em Coimbra chamava-se Antero de Quental. Era um rapaz açoriano e olhos muito azuis, muito barbudo e com grande cabeleira. Um dia, no fim de aulas, convidámo-lo a ir lá a casa comer uns bolinhos de bacalhau como só a Margarida sabia fazer.

- Nunca comi bolinhos tão bons! São de comer e chorar por mais – disse Antero em voz alta para a Margarida o ouvir.

Vaidosa com o elogio, ela apressou-se a aparecer à porta da sala.

-Se o menino gostou, volte amanhã para provar os meus rojões. Já ali os tenho em vinha-d’alhos.

A partir daí, o Antero passou a ser um freguês dos petiscos da Margarida e o nosso melhor amigo”.

 

Com efeito, uma amizade inicialmente na luta alimentada e pelo estômago, que prosseguiria posteriormente ao longo da vida, inclusive aquando da viagem que ambos empreenderiam até Paris, em 1878, para visitar a Exposição Universal.

Mas também, como cita o mesmo livro, que passaria também por vários outros episódios e peripécias, como a deslocação de ambos a Lisboa para visitarem livreiros, com o objetivo publicarem os seus trabalhos. No entanto, uma iniciativa falhada, porquanto “nenhum aceitou publicar o meu romance e os poemas de Antero”.

Como é óbvio esta amizade prosseguiria após os tempos de Coimbra, apesar das diferentes visões políticas de ambos e a separação física, que geralmente colmatada por cartas. Entre estas, algumas sobre os vinhos que Antero agradece e elogia: “já libei os teus néctares minhotos (…) Do teu vinho, que já tenho libado, dir-te-ei maravilhas”.

Antero é e ainda recolhido incondicionalmente em Guimarães, na quinta de Santa Ana, perto do Mosteiro da Costa, aquando dum profundo momento de depressão e é visita frequente à biblioteca da Quinta Boamense, em Cabeçudos (Vila Nova de Famalicão). Com efeito, era aí que Alberto Sampaio passava horas a fio a ler e a investigar, em especial sobre a ocupação romana da Península Ibérica. O comentário de Antero de Quental ao amigo não deixa sombra de dúvidas sobre essa amizade e cumplicidade entre ambos:- “não conheço ninguém tão coca-bichinhos como tu – disse-me o Antero quando lhe falei na minha ideia de escrever sobre as vilas dos romanos no Norte de Portugal.” …

Cumplicidade que perduraria até ao trágico dia do suicídio de Antero, em 11 de Setembro de 1891, em que Sampaio escreveria a Oliveira Martins: “enfim acabou-se o nosso santo amigo e com ele vai uma boa parte de nós mesmos”…

Ademais, a influência de Antero estaria ainda patente na poesia do poeta vimaranense Guilherme de Faria (1907-1929). Com efeito, Antero, a par de António Nobre, é indubitavelmente uma referência tutelar deste vate vimaranense, inclusive e lamentavelmente na morte de ambos por suicídio. Os versos do poema “Soneto” do citado poeta vimaranense são claramente elucidativos:

“Choram, dentro de mim, versos de Antero”…

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