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Dia Mundial da Poesia

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ sábado, março 11, 2023
© Direitos reservados
Dois poetas perfazem 100 anos de nascimento: Eugénio de Andrade (1923-2005) e Natália Correia (1923-1993). Ainda se pode aditar e evocar Guerra Junqueiro a propósito do centenário da sua morte.

Criado na 30ª. Conferência Geral da UNESCO em 16 de dezembro de 1999, o Dia Mundial da Poesia, a 21 de Março, visa vincar a importância da reflexão sobre o poder da linguagem e do desenvolvimento das habilidades criativas de cada pessoa.

Ora, neste ano de 2023, dois poetas perfazem 100 anos de nascimento: Eugénio de Andrade (1923-2005) e Natália Correia (1923-1993). Nomes aos quais se pode aditar e evocar Guerra Junqueiro (1850-1923) a propósito do centenário da sua morte.

De facto, quem não se lembra Guerra Junqueiro, o poeta transmontano e republicano da literatura social panfletária e da sátira política, que desde a escola primária nos acompanha “pela estrada plana, toc, toc, toc”, na companhia da jumentinha e da velhinha moleirinha?

Poeta do anticlericalismo d’ “A Velhice do Padre Eterno” (1885) e vate patriótico de “A Pátria” (1894), Junqueiro cantaria também “Os Simples” (1892), um hino à terra e uma sentida evocação da infância, que consubstancia o mundo das misérias e injustiças, encarnando o pastor asceta, a moleirinha e o cavador trágico. Obra na qual se sente a ternura pela paisagem, com tendências panteístas e notas de franciscanismo.

Mas recordar Junqueiro significa também lembrar a sua amizade com Raul Brandão, nascido em Março. Uma amizade que ficara bem evidente na correspondência trocada entre ambos, reforçadas na carta-prefácio que Junqueiro escreveu sobre o livro brandoniano “Os Pobres”(1906) e que já anteriormente Raúl Brandão cimentara com a dedicatória da sua obra “A Farsa (1903), dedicada  “ao Grande Poeta Guerra Junqueiro”.

Guerra Junqueiro é aliás um dos nomes que Raul Brandão mais recorda em muitas páginas das suas Memórias, como o ilustra esta passagem do volume II (1925), intitulada “Os últimos dias de Guerra Junqueiro”:

 

“Tenho conhecido em toda a minha vida dois ou três santos e alguns homens superiores. Nunca vi mágico de força de Junqueiro. Homem extraordinário! Engenheiro extraordinário! Às vezes Deus fala pela sua boca; outras – quando menos se espera – é o Diabo fosforescente e sarcástico”.

 

Porém, neste ano de 2023, mais poetas centenários sobressaem. Falamos, por exemplo, de José Fontinha, o funcionário dos quadros da Inspeção dos ex-Serviços Médico-Sociais, que adotaria o pseudónimo poético de Eugénio de Andrade.

Com efeito, uma obra poética que Vergílio Ferreira carimbaria com a aura prestigiante de “poeta da intensidade”, que com leveza e pureza sabe escolher as palavras e as imagens que nos transmitem com musicalidade o sentido do maravilhoso, da esperança e da plenitude.

Um beirão da Póvoa de Atalaia (Fundão) que na cidade (Lisboa e Porto) manteria a sua matriz identitária:

 

“Sou filho de camponeses, passei a infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa que prolongam o Alentejo e, desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água. Nesse tempo, que só não foi de pobreza por estar cheio do amor vigilante e sem fadiga da minha mãe, aprendi que poucas coisas há absolutamente necessária. São essas coisas que meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulham desde a infância no mundo mais elementar. Guardo desse tempo o gosto por uma arquitetura absolutamente clara e despida, que os meus poemas tanto se têm empenhado em refletir: o amor pela brancura da cal, a que se misturam invariavelmente, no meu espírito, o canto duro das cigarras; uma preferência pela linguagem falada, quase reduzida às palavras nuas e limpas de um cerimonial arcaico – o da comunicação das necessidades primeiras do corpo e da alma”.

 

E assim é de facto trabalhada a sua obra poética entre a qual se conta, entre outros, “Os Amantes sem Dinheiro” (1950), “As Palavras Interditas” (1951), ou “Ostinato Rigore” (1972), que sublinha o obstinado rigor da expressão, elíptica e incisiva, como se sugere na metáfora metapoética do poema “Os Frutos”: “assim eu queria o poema:/fremente de luz, áspero de terra/rumoroso de águas e de vento”.

 Obras a que se somam posteriormente “Véspera da Água”´(1973) , “Matéria Solar” (1980) e “O Sal da Língua” (1995, que retomam os grandes motivos, tópicos e problemas do autor. Produções poéticas que se seguem ao longo das décadas seguintes, nas quais são evidentes originais ressonâncias de Rimbaud a Pessanha, de Pessoa a Lorca e de Rilke a Éluard, cuja poesia constrói um lugar onde corpo e a natureza se fundem, deliberadamente aberta a um mundo que preserve os valores culturais e civilizacionais do homem.

Igualmente, Eugénio é, na perspetiva de António José Saraiva “ o grande poeta do amor da poesia portuguesa do século XX”, quer do amor individual, que o poema “Improviso na madrugada” canta ( “húmido de beijos e lágrimas,/ ardor da terra com sabor a mar,/o teu corpo perdia-se no meu/Vontade de ser barco ou de cantar“), quer o amor universal que o poema  “Urgentemente” explicita dramaticamente, à laia de um SOS pungente:

 

“É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

 

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos, 

muitas espadas.

 

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rodas e rios

e manhãs claras.

 

Cai o silêncio nos ombros e a luz

Impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.”

 

Abundantemente premiado, entre os quais com a atribuição do Prémio Camões (2001), o Grande Prémio da Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (2000) e o Prémio de Poesia da revista Poesia e Homem, Cantão, China, em 2004, Eugénio de Andrade viu ainda a sua obra “Branco no Branco” (1985) galardoada com o Prémio da Critica do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários e receberia também  o Prémio D. Diniz pela sua obra “Vertentes do Olhar”(1987).

 

Natália Correia (1923-1993, por sua vez, é a diva centenária que nos falta abordar. Poetisa, ficcionista, ensaísta e dramaturga, conceituada, Natália(de Oliveira) Correia, nascida na Fajã de Baixo, na Ilha de S. Miguel (Açores),  vivenciaria a maior parte da sua vida em Lisboa, a partir dos seus 11 anos.

Mulher de personalidade livre e vigorosa, embora romântica, cuja vida se reflete na sua escrita talentosa, genuína e combativa, Natália teve uma vida cheia e interventiva, cuja ação cívica se centrou nas causas humanitárias como a defesa da liberdade, a denúncia dos regimes autoritários e a emancipação feminina. Uma existencialista e rebelde que combateu ousadamente o preconceito, quer na escrita quer na vida pessoal.

Porém, polifacetada e dinâmica, Natália passaria ainda pela televisão, nos anos 80, protagonizando o programa “Mátria”, que abordaria de forma especial o feminismo; e dedicar-se-ia ainda às lides editoriais na Arcádia. Seria aliás no setor editorial que sofreria alguns processos judiciais. Entre outros, a responsabilidade pela publicação das “Novas Cartas Portuguesas” das conhecidas “Três Marias” (Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta) e a sua edição da “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” (1966), que considerada ofensiva aos costumes lhe valeria a condenação de 3 anos de prisão com pena suspensa.

Efetivamente, Natália manifesta  frequentemente e sem peias uma atitude de inconvencionalidade,  que é capaz de quebrar tabus e romper pudores, como o dilucida o poema “Cosmocópula”, extraído da coletânea “Eros de passagem – Poesia erótica contemporânea” (1966):

 

(…)

“O corpo é praia, a boca é nascente

e é na vulva que a areia é mais sedenta

 poro a poro vou sendo o curso da água

da tua língua demasiada e lenta

dentes e unhas rebentam como pinhas

de carnívoras plantas te é meu ventre

abro-te as coxas e deixo-te crescer

duro e cheiroso como o aloendro.”

 

Ademais, politicamente reformista, a sua ação interventiva seria também intensa neste domínio. Realmente, comprometida desde o início à oposição democrática, em especial no apoio às candidaturas presidenciais de Norton de Matos (1945) e Humberto Delgado (1958) e posteriormente na Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), liderada por Mário Soares, desde cedo a jovem Natália calcorrearia os trilhos da cidadania ativa.  Mais tarde, após o 25 de Abril, seria ainda deputada da Assembleia da República, com adesão ao PPD/ PSD, devido à sua perspetiva reformista e amizade a Sá Carneiro e Snu Abecassis, partido que viria posteriormente a abandonar, considerando o seu conservadorismo em matéria de costumes, aderindo ao Partido Regenerador Democrático de Ramalho Eanes (1987-1991).

Recorde-se a propósito desses tempos parlamentares, em 1982, a polémica travada com o deputado do CDS João Morgado, no decurso do debate sobre a despenalização do aborto. De facto, após este asseverar que “o ato sexual é para ter filhos”, Natália, irreverente e sarcástica, responderia mordazmente com este poema:

 

“Tem como fim cristalino,

preciso e imaculado

fazer menina ou menino,

e cada vez que o varão

sexual petiscomanduca

temos na procriação

prova de que o homem truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,

lógica é a conclusão

de que o viril instrumento

só usou – parca ração! –

uma vez. E se a função

faz o  órgão – diz o ditado –

consumada esta exceção

ficou capado o morgado.”

 

Porém e afora a poesia erótica, bem como “revolucionária” e ironia sociopolítica, Natália assume também uma dimensão romântica, em especial nos “Sonetos Românticos” (1990), obra que seria distinguida com  o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Curiosamente, uma obra que, aquando da morte da poetisa, o prestigiado jornal “New York Times”, na sua nota de homenagem,  consideraria “a mais bonita da literatura portuguesa”.

O soneto “O Espírito” fala por si:

 

Nada a fazer amor, eu sou do bando

Impermanente das aves friorentas;

E nos galhos dos anos desbotando

Já as folhas me ofuscam macilentas;

 

Eu vou com as andorinhas. Até quando?

À vida breve não me perguntes; cruentas

Rugas me humilham. Não mais em estilo brando

Ave estroina serei em mãos sedentas

 

Pensa-me eterna que o eterno gera

Quem na amada o conjuro. Além, mais alta,

Em ileso beiral, aí espera:

 

Andorinha indemne ao sobressalto

Do tempo, núncia de perene primavera

Confia. Eu sou romântica. Não falto.”

 

Natália Correia, pela sua obra e ação cívica, seria (ainda) galardoada como Grande-Oficial  da Ordem de Santiago e Espada e Grande-Oficial da  Ordem da Liberdade e indigitada pelo Teatro Nacional D. Maria II para escrever uma peça alusiva ao 4º. centenário de Camões (1980), que centrada na figura humana do nosso épico e imortalidade do seu génio se intitularia expressivamente , tal como o soneto camoniano,  “Erros meus, má fortuna, amor ardente”.

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