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Santos Simões, um homem de Abril

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ sábado, abril 08, 2023
© Direitos reservados
Na sua luta pela justiça social e melhoria das condições de vida, Santos Simões mostra com consistência a sua opção pelos princípios democráticos, como homem de Abril que é e que há de vir.

No presente ano de 2023 perpassam 100 anos do nascimento de Joaquim dos Santos Simões, nascido na freguesia de Espinhel, concelho de Penela, em 12 de Agosto de 1923. Beirão por nascimento e vimaranense por paixão e adoção, Santos Simões iniciaria os seus estudos primários na sua terra natal, que prosseguiria em Coimbra no Seminário Maior (depois Colégio Progresso) e posteriormente na Universidade de Coimbra, na qual, em 1950/1951,concluiria a licenciatura em Ciências Matemáticas e Engenharia Geográfica.

Seria aliás na subsequência da sua licenciatura que Santos Simões, em Outubro de 1957, chegaria a Guimarães, colocado para o exercício de funções docentes na Escola Industrial e Comercial de Guimarães, trazendo na bagagem toda uma panóplia de experiências socioculturais, levadas a cabo na presidência da Associação Académica de Coimbra e do Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra.

Ora, Guimarães ofereceria a Santos Simões pano para mangas nas vertentes associativas e culturais, que logo após sua chegada se abriria à sua energia e dinâmica transformadora. Deste modo, inicialmente como encenador do Ritmo Louco, posteriormente como diretor artístico do denominado Teatro de Ensaio Raul Brandão, Santos Simões coloca em palco Raul Brandão (que este ano celebra o centenário da publicação de “Teatro”), tal como ele vimaranense por adoção; e “recuperaria” Gil Vicente, o pai do teatro português. Escritores que jamais deixaria esquecer em várias frentes de combate: o primeiro na luta pela instalação da Casa-Museu de Raul Brandão na Casa do Alto, em Nespereira, bem como na organização das comemorações do centenário de escritor, em 1967, em colaboração com o Círculo de Arte e Recreio (CAR); o segundo na porfia pela implantação de uma peça escultórica evocativa a mestre Gil, na cidade onde teria nascido, que culminaria em 2003 com a inauguração do “Monumento aos 500 anos do teatro português”, instalado na Alameda de S. Dâmaso.

Aliás seria ainda Santos Simões e o CAR que promoveriam em 17 de Abril de 1971, nas Caldas das Taipas, a homenagem ao escritor Ferreira de Castro, consagrado com a inauguração do seu busto, localidade que já em 1965 seria também proscénio do III Encontro dos Suplementos e Paginas Culturais da Imprensa Regional, com a presença do escritor Ferreira de Castro e a PIDE de vigilância.

De facto, Santos Simões coordenaria o suplemento cultural do “Notícias de Guimarães” Artes e Letras”, entre 1961 e 1975, responsável pela organização deste encontro, uma separata que frequentemente abordaria nas suas quatro páginas assuntos como a literatura e o cinema, mas também teatro, fotografia, banda desenhada, escultura e educação. Suplementos culturais que não só publicariam textos de diversas figuras nacionais, como também artigos de referência de figuras internacionais, abordando as mais diversas temáticas.

Porém, a nível sociocultural Santos Simões continuaria imparável. De facto, logo em 1958, aparece como um dos fundadores do Cineclube de Guimarães e em 1960 assume a presidência da Sociedade Musical de Guimarães.

Data também desta década 60 a sua demissão da função pública, em 1961, em consequência da sua ação política oposicionista no âmbito do Movimento Democrático Português (MDP/CDE) bem como, posteriormente, a prisão, em 1968.

No entanto, muito provavelmente, terá sido na Sociedade Martins Sarmento que a ação cultural de Santos Simões mais se sentiria. Com efeito, face à crise diretiva da instituição nos finais dos anos 80, emerge em 1990 uma Comissão Administrativa e Eleitoral, que culmina em outubro com eleições para a Direção, na qual Santos Simões assume a presidência. Inicia-se assim um novo ciclo que passa pela reorganização interna, conservação da sede e do acervo documental, preservação dos espaços arqueológicos e, obviamente, uma nova dinâmica cultural traduzida em eventos diversos como as comemorações dos centenários de Camilo, Mozart, Antero de Quental e Alberto Vieira Braga, bem como os 350 anos da Revolução do 1º. de dezembro, entre outras efemérides. Destaque-se ainda o centenário de Francisco Martins Sarmento, em 1999, ao qual a Revista de Guimarães dedicaria o centésimo número, bem como a edição de obras suas e documentação do congresso.

Paralelamente, no terreno, ocorrem intervenções na Citânia de Briteiros, onde se edifica a nova Casa de Acolhimento (obra a que já não assistira em vida), instala-se o Museu de Arte Castreja, no Solar da Ponte, aberto ao público em 2003 e lançam-se as bases do protocolo de colaboração entre a Universidade do Minho, a Sociedade Martins Sarmento e a Câmara Municipal de Guimarães para a criação da Casa Sarmento – Centro de Estudos do Património.

 

A educação e a escrita

Outrossim, uma outra vertente importante deste homem de Abril seria a sua ação no âmbito da educação. Neste domínio, além das funções docentes na atual Escola Secundária Francisco de Holanda, na qual seria reintegrado após o 25 de Abril, Santos Simões exerceria a docência na Escola do Magistério Primário, onde ensinaria duas gerações de professores do 1º. ciclo do ensino básico. Relevante ainda a sua ação na Comissão Instaladora da Universidade do Minho, em 1975, a cujo Senado viria fazer parte a partir de 1985.

Marcante seria ainda a sua ação sociopedagógica e literária. Com efeito, para além da colaboração assídua e permanente em vários jornais regionais, nomeadamente nos hebdomadários Notícias de Guimarães e Povo de Guimarães (do qual seria fundador da respetiva cooperativa editorial), assim como articulista da Revista de Guimarães, Santos Simões legar-nos-ia também uma intensa produção literária no âmbito da intervenção cívica e política, que, já antes iniciara em Coimbra. Sobressai nesta vertente, o ensaio “Engrenagens do Ensino”, que tem por base algumas conferências proibidas pela censura da época. Um livro que acabaria por receber o Prémio Ensaio da Imprensa Cultural, recheado de comprometida intervenção democrática, deliberadamente centrado na política educativa e nas problemáticas da educação e ensino, que na esteira de António Sérgio, avançaria como novas ideias de “autogoverno escolar” e “autogestão pedagógica”.

Uma obra que seria bastante debatida, na qual emergem, segundo Licínio Lima, conceitos como o “espírito crítico”, a “consciência cívica” e “uma educação “para a autonomia, isto é, uma educação democrática”.  De facto, como acrescenta o citado autor, um texto que deixa “claramente enunciado, o mote de toda uma vida – democratização do ensino, igualdade de oportunidades, educação para a cidadania democrática, aliando necessariamente formação intelectual e formação profissional, instrução e educação cívica”.

Entrementes, Santos Simões corre o país em colóquios, mesas redondas e congressos, ainda que muitos deles proibidos, acabando por reunir estas intervenções no livro intitulado ”Ensino – Projecto de Reforma ou Reforma do Projecto”, que sairia do prelo em Junho de 1971.

Quase paralelamente, surge ainda “Mas o melhor do mundo são as crianças – para uma compreensão da situação materno-infantil no concelho de Guimarães” (1976). Um retrato socioeconómico do concelho vimaranense no qual apresenta “algumas sugestões esquemáticas para a atenuação das diferenças e superação das carências assistenciais materno-infantis no concelho de Guimarães”. Neste domínio realce-se ainda a sua participação nos órgãos sociais da CERCIGUI e Infantário Nuno Simões.

Com efeito, na sua luta pela justiça social e melhoria das condições de vida, valores inseparáveis na sua vida e escrita, Santos Simões mostra com consistência a sua opção pelos princípios democráticos, como homem de Abril que é e que há de vir …  Uma pugna incansável que passaria pela educação, que, na sua perspetiva, seria uma das alavancas do futuro melhor.

Mas o Estado Novo não lhe dá descanso. Deste modo, vem novamente a sentir na pele mais uma proibição censória, aquando da abordagem no Convívio do tema “Abordagem de alguns problemas da criança”, a propósito de Dia Internacional da Criança. Uma situação que motivaria como resposta a publicação da carta aberta ao Governador Civil de Braga intitulada  “E, contudo, move-se” (1973). Aliás, a intervenção cívica e política é uma marca indelével da sua coerência enquanto homem comprometido com a sociedade que pretende sinceramente melhorar e tornar mais justa. Daí, que na sua escrita ecoem gritos, como “Braga, grito de liberdade. História possível de meio século de resistência” (1999), erga muralhas “Em defesa da cidade” (2000), ora agite a memória coletiva como na publicação “90.º Aniversário da República – para que Guimarães não esqueça” (2001), ora n’ “Uma Reflexão sobre a Monarquia do Norte ou o Reino da Traulitânia” (2004).

As crianças seriam ainda uma outra preocupação de Santos Simões. Como tal, inicia também a publicação de contos infantis como “a Juba do Leão” (1962), “A Cadelinha Pipocas e o Finório cão-de-todos” (1963), bem como, entre outros, “A Galinha Gertrudes e o Galo Fraldiqueiro” (1971). Contos que mais recentemente, em 2001, foram reunidos numa edição da Câmara Municipal de Guimarães intitulada “Os meus contos para crianças”.

Mas na narrativa escreveria ainda os contos “Água de Vivos” e “Contos Escolhidos”, que manifestam um pendor popular e anedótico de cariz galhofeira, mas especialmente “O Senhor da Cana Verde” (2003), este último sobre a expressão sensível da vivência da doença, que constituiu uma lúcida reflexão e desabafo, e/ou como se escreve no prefácio da obra, “um grito silencioso no meio do barulho provocado pela passividade”.

Paralelamente, Santos Simões cultivaria ainda a dramaturgia. Deste modo, publicaria ainda peças de teatro infanto-juvenis como “A Bruxa, a Fada e Eu”, “Dom Tão Parlapatão” ou “Um rei sem coroa”.  Teatro a que junta ainda a peça “O Cerco”, encenada pelo Teatro de Ensaio Raul Brandão (TERB), aquando da homenagem pública ocorrida em 1979“, “A crónica de uma longa jornada” peça escrita e encenada em comemoração dos 200 anos da Revolução Francesa ou “O Auto da Rainha Santa”.

Mas, Santos Simões também escreveria poesia como se constata na sua “Terra do meu bem querer!”, que dedica “aos operários e sua região que, à custa do seu trabalho e das mais-valias roubadas aos seus salário de miséria, contribuíram, decisivamente, para a prosperidade da terra vimaranense”.

Respigamos dessa obra poética o poema “Guimarães”, dedicado a Antonino Dias, datado de dezembro de 2001, aquando da classificação do Centro Histórico pela UNESCO como Património Mundial da Humanidade, bem como a composição lírica “Terra que eu não tive”:

                   

Minha terra é ondulada                                           Minha terra é este berço

cabelo encaracolado                                                onde nasceu Portugal!

sobe desce, desce sobe                                            O casco urbano bem terso

é o nosso fado falado                                               espraia-se em ruas telhados

sempre ao ritmo da festada.                                  em seu cofre medieval

                                                                                     a todos deixa espantados!

No centro o coração

escrínio de herança sagrada!                                  Mas o que a mim mais encanta

Se cá temos o Castelo                                              é o povo que aqui vive

não falta a Colegiada                                               aqui sofre, trabalha, canta

foi rumor de uma nação                                          na terra que eu não tive

foi o nosso mais forte elo

                                                                                     Mas que é minha … pois então.

Aos nosso olhos é assim

um tesouro a resguardar

como terra sem idade

como madre que outrossim

é espelho a conservar

pra espanto da Humanidade.

 

Eclético e homem de convicções, por vezes frontal, mas afável, Santos Simões desempenharia ainda um papel importante nas lides autárquicas, em especial na Assembleia Municipal de Guimarães, cujas intervenções clarividentes eram ouvidas respeitosamente.

Faleceria em 23 de Junho de 2004. Porém, dias antes, tomaria conhecimento da atribuição da denominação Escola Secundária Santos Simões à ex-Escola Secundária da Veiga. Era o tributo merecido que receberia pela sua ação pedagógica, que muito o emocionaria.

Santos Simões seria ainda agraciado com a Medalha de Ouro da Cidade de Guimarães e distinguido como Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.  

Em súmula um homem de Abril antes de Abril, que até à morte lutou pelos ideais democráticos, como diria “sem temores/sempre de pé”…

 

“A flor não é flor

eternamente

mas não sabe

o cordeiro muge ao nascer

não muge sempre

só a pedra é eterna.

Deste por ti a viver

Não te quiseste

ao nascer.

Vive então feliz

se puderes

sem temores,

sempre de pé”

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