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Poetas Centenários: Sebastião da Gama

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ quarta-feira, maio 15, 2024
© Direitos reservados
Cedo marcado pela consciência da efemeridade da vida, o vate da Arrábida suportaria pessoalmente e liricamente uma lúcida aprendizagem da morte e da confiança na vida, sem desistências nem desalentos.

SEBASTIÃO Artur Cardoso da GAMA (1924-1952), professor e poeta, viveu apenas escassos 27 anos, perseguido desde criança por uma tuberculose que o vitimaria. De facto, apesar de marcado desde cedo pela consciência da efemeridade da vida, o vate da Arrábida suportaria pessoalmente e liricamente uma lúcida aprendizagem da morte e confiança na vida, sem desistências e desalentos, que a sua obra claramente indicia.

Licenciado em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa e posteriormente professor,  Sebastião da Gama (SG) iniciar-se-ia na poesia na Távola Redonda e Brotéria, publicando em 1945 “Serra-Mãe”, o seu livro de estreia. Uma poesia de exaltação da natureza e de Deus, herdeiro de Régio na inquietação religiosa, mas que sem maniqueísmos se entrega de corpo e alma na tradição franciscana, vendo o “sinal da Beleza de Deus incarnada nas coisas” (Maria de Lurdes Belchior, 1983).

Com efeito, nascido em Vila Nogueira de Azeitão em 10 de Abril de 1924, SG aí viveria até à primeira adolescência, paredes meias com o seu local de retiro na Serra da Arrábida, defronte ao ilhéu de Pedra da Anicha, para onde se deslocaria terapeuticamente por conselho médico. Residiria posteriormente no Portinho da Arrábida, em companhia dos pais, que aí instalariam uma pousada e restaurante. Deste modo, SG vivenciaria na serra mãe a exaltação da existência  e da natureza num hino de exaltação da vida, em comunhão com os homens, a natureza e com Deus, na ânsia da ascese transcendental, que a Arrábida catapulta para o encontro consigo mesmo e os outros:

 

Batam-me à porta                                                   os que há muito não vêm uma flor

os que andam lá por fora, à neve;                         e encontram só poeira no caminho:

batam                                                                          os que não amam já nem já os ama

os que tiverem frio e sede;                                      ninguém                                        

os que tiverem saudades de carinho;                    os esquecidos de como se sorri.”

os desprezados;                           

os que não têm Mãe …”

 

De facto, comungando intimamente que “pela Poesia se vai até à verdade “, o poeta da Arrábida toma a poesia como uma dádiva divina e uma espécie de chamamento transcendente, valorizando as coisas mais simples com a humildade e ternura da infância, que o excerto deste “Pequeno Poema”, extraído da sua “Antologia Poética” dilucida:

 

“ Quando eu nasci

ficou tudo como estava,

Nem homens cortaram veias

Nem o Sol escureceu,

Somente,

esquecida das dores,

a minha Mãe sorriu e agradeceu,

(…)

 

Efetivamente, desde o seu nascimento igual a tantos outros, mas condicionado pela doença,   a sua poesia continua a afirmar-se como um espaço de sobrevivência na demanda da plenitude, como o poema da obra “Pelo Sonho é que vamos” (1953), publicado a título póstumo, indicia:

 

“Pelo sonho é que vamos,

comovidos e mudos.

Chegamos, não chegamos?

Haja ou não haja frutos,

pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos

Basta a esperança naquilo

que talvez não teremos.

Basta que a alma demos,

com a mesma alegria,

com que desconhecemos

e no que é o dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?

Partimos. Vamos. Somos.”

 

Constata-se assim uma poesia em tom coloquial, aparentemente prosaica, assente na simplicidade vocabular e comunicabilidade direta e espontânea, cujas imagens, sonoridades e ritmos pretendem vigorosamente abrir aos homens as janelas do sonho e da autenticidade.

Não se estranhe por isso o poema “Meu país desgraçado”, inserido em “Cabo da Boa Esperança”, que mais parece próprio da corrente neorrealista. Porém, neste poema, SG apenas exorta a combater a atitude de braços cruzados e a defender a autenticidade, mantendo-se todavia fiel à liberdade de criação presencista e (parcialmente) alheio à necessidade de empenhamento social mais próxima dos movimentos neorrealistas.

 

Meu país desgraçado!                                            E em nome dos direitos

E no entanto há Sol a cada canto                           que te deram a terra, o Sol, o Mar,

e não há Mar tão lindo noutro lado                       fere sem dó

nem há céu mais alegre do que o nosso,              com lume do teu antigo olhar

nem pássaros, nem águas …

                                                                                     Alevanta-te, Povo!

Meu país desgraçado?                                             Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,

Por que fatal engano?                                              A calada censura

Que malévolos crimes                                              que te reclama filhos robustos!

teus  direitos de berço violaram?

                                                                                     Povo anémico e triste

Meu povo                                                                   meu Povo sem forças, sem haveres!

de cabeça perdida, mãos caídas,                           - olha a censura muda das mulheres!

de olhos sem fé                                                         Vai-te de novo ao Mar!

- busca dentro de ti,  fora de ti, aonde                  Reganha tuas barcas, tuas forças

a causa da miséria se te esconde                           e o direito de amar e fecundar

                                                                                     as só por Amor te não desprezam!”

 

Porém, só após a sua morte, em 7 de Fevereiro de 1952, muita da sua obra seria publicada a título póstumo pela esposa Joana Luísa Rodrigues. Assim, destacam-se entre outros títulos “Itinerário Literário” (1967), as suas páginas de memórias reunidas em “Diário” (1958) e “O Segredo de Amar” (1969), integrando tanto o registo memorialístico, como pequenas narrativas, artigos publicados, comunicações públicas ou impressões de viagens. Obras às quais se juntam as publicações de “Lugar de Bocage na nossa poesia de amor” (1953) e “Cartas” (1994).

Com efeito, para além de poeta, Sebastião da Gama distinguiu-se também como pedagogo e professor, que a citada obra “Diário” revela, enquanto experiência docente e valiosa reflexão sobre o ensino. Considerado um poema pedagógico em prosa, “Diário” descreve a experiência de estágio pedagógico de SG entre Janeiro de 1949 e Fevereiro de 1950, que permanece como uma lição atual de pedagogia, centrada no sentido de responsabilidade, generosidade e criatividade, com o intuito de trilhar uma educação para a liberdade e descoberta da relação interpessoal, bem como a arte de incitamento ao saber.

Como diz Lindley Cintra, inserido no Dicionário de Literatura de J. Prado Coelho “o Diário é, sem dúvida, um dos mais impressionantes documentos humanos escritos em Portugal na primeira metade do século XX – um documento sobre a maneira como concebia o ensino e a vida, de alguém para quem dar uma aula mal se distinguia de criar um poema”.

Deste modo, apesar de marcado desde cedo pela fugacidade da vida, o poeta legar-nos-ia liricamente uma lúcida aprendizagem da superação das dificuldades, sem desistências e desalentos, que a sua obra “Cabo da Boa Esperança” (1947) claramente indicia:

 

“ A vela rasgou-se em fitas

E quando ao mais desde o casco

até à ponta dos mastros

o fundo do Mar que o diga.

 

Cá por mim, passei o cabo.

Cheguei aonde o Destino

desde sempre me chamava

Se estou sem pinga de sangue

depois de tantos naufrágios,

se arribei são ou doente,

se tenho os ossos partidos,

é melhor não perguntá-lo

 

Basta saber que cheguei

e que é de lá que vos falo.”

 

Realmente, a sua vida foi um poema e o poeta chegou ao seu destino. E é de lá que nos fala …

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