Raul Brandão e as "ilhas desconhecidas"
Em 1924, há cem anos atrás, o escritor Raul Brandão e a esposa Maria Angelina, em companhia de um grupo de intelectuais, entre os quais Vitorino Nemésio, então jovem estudante terceirense residente em Lisboa, iniciaram uma viagem aos Açores e à Madeira, a bordo do navio S. Miguel, que partindo em 8 de Junho de Lisboa rumo ao Corvo duraria cerca de dois meses. Curiosamente, uma viagem que marca o início do relacionamento entre ambos os escritores, que Nemésio refere em “Raul Brandão íntimo”.
Ora, vem pois a propósito de mais um aniversário de Raul Brandão (RB), nascido em 12 de Março de 1867, relembrar esta viagem que teve como resultado a publicação em 1926 a obra “As Ilhas Desconhecidas”.
Efetivamente, “As Ilhas Desconhecidas” é um extraordinário diário impressionista, inicialmente registado no inseparável caderninho de capa preta que geralmente acompanhava RB, posteriormente pincelado em palavras à laia de Claude Monet, que além das paisagens e vida quotidiana das gentes insulares, capta magistralmente e anota particularidades do povo dos ilhéus, pobre e humilde, bem similar àquele donde ele próprio proviria, na foz do Douro, enquanto filho e neto de pescadores. Obviamente, um legado em matizes de tonalidades solidárias, em que perpassa igualmente um humanismo social notório, que extravasa as páginas de rara beleza e a policromia física e geográfica das ilhas.
De facto, como escreve no sintético prefácio intitulado “Em três linhas”, Raul Brandão claramente expressa, em poucas linhas, os pontos e as suas linhas que urde a tessitura diarística : “ este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha … Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nos leitores o desejo com os seus próprios olhos! … “
Com efeito, neste livro dedicado “aos meus amigos dos Açores”, que exala o fulgor físico e social das ilhas, Raul Brandão pinta-nos as ilhas dos ciclones, os seus homens e barcos, mas também as belezas insulares e as atividades do povo insular, como a pesca da baleia:
“Nas Lajes, outro dia, saía o enterro dum baleeiro morto no mar, quando do Alto da Forca anunciaram o bicho. Ia tudo compungido – ia a mulher compungida e os pescadores compungidos, o padre, o sacrista, a cruz e a caldeira - , iam aqueles homens rudes e tisnados em passo de caso grave e fatos de ver Deus – e logo a marcha compassada parou instantaneamente e mudaram de atitude: ficou só o padre com latim engasgado e o caixão no meio da rua, e os outros, enrodilhados, levaram o sacristão, de abalada, até à praia. Baleia! Baleia! … Deixam um casamento ou um enterro em meio, um contrato ou uma penhora, as testemunhas e a justiça, e correm desesperados a arrear à baleia.”
De facto, para além do relato da viagem que se estende pelo itinerário marítimo e aproximação a cada ilha, perspetivam-se ainda as impressões da paisagem poética e pictórica e a narração da vida quotidiana dos habitantes ilhéus, aspetos a que o narrador e “marinheiro-viajante” não deixa de aditar a reflexão ontológica, como é seu timbre, em especial sobre a fragilidade da existência humana e a dualidade da vida e morte, temáticas recorrentes na sua cosmovisão literária e omnipresente:
“As estrelas nos ares agitados parecem outras estrelas, o céu outro céu e as forças desencadeadas do caos nunca as senti tão perto como hoje (…)
A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique que não sei quantas polegadas. Todos os passageiros se fingem despreocupados.”
Ademais, também presente, a aproximação aos mais vulneráveis, outra das tónicas da sua interioridade pessoal e literária. Com efeito, ao contrapor o trabalho de sofrimento dos maquinistas nas fornalhas do navio ao conforto dos passageiros, esmiuçando o interior do navio, RB revela também introspetivamente a interioridade humanista que lhe é inata:
“Enquanto cá em cima todos nós vivemos no hotel Francfort de Santa Justa, os outros cá em baixo vivem no inferno.”
Em súmula, uma exposição de telas impressionistas das ilhas para além do lugar comum e “turístico”, que nos remetem para a imensidão dos espaços marítimos e o interior de cada ilha, em belíssimos postais impressionistas sobre “A Floresta Adormecida”, “A Ilha Azul”, “As Sete Cidades e as Furnas”, “A Visão da Madeira” e outras ilhas açorianas, em especial “O Corvo” e “O Pico”:
“É aqui que a luz dos Açores atinge talvez a perfeição (…) Esta ilha negra e disforme apoderou-se dos meus sentidos. Tudo o que a princípio me repelia, o negrume, o fogo que a devora, o mistério, tudo me seduz agora. O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atração. É mais do que uma ilha – é uma estátua erguida até ao céu e moldada pelo fogo -, é outro Adamastor como o do cabo das Tormentas.”
Estamos de facto, como escreveria Pedro da Silveira, perante “ o melhor livro que até agora um forasteiro escreveu sobre os Açores. Os outros terão olhos, este, tem olhos e alma!”.
Ou, como diria Pedro Mexia: “ um magnífico livro de viagens, mas é muito mais do que isso: faz da geografia das ilhas portuguesas uma geografia metafísica, tremenda e maravilhosa. Um reino deste mundo e de outros mundos.”
Um reino dos mais poéticos da literatura portuguesa e quiçá o mais completo no âmbito literário e sociológico sobre os Açores e a Madeira, que aproximam o livro aos mundos da antropologia e etnografia. Efetivamente um reino rude, mas belo como as suas flores, hercúleo como a lava construtora sobre a imensidão do Atlântico, mas também de convicções telúricas e hospitaleiras.
Recordo, à colação, quando lá estive, essa beleza e hospitalidade, concretizada na visita a dois camaradas de armas. Recordações que passaram também pela evocação do exemplar capitão-mor e defesa central do Vitória José Silveira Júnior, conhecido pela alcunha de “Chinchinha”, o hortense nascido em 1926 (curiosamente o ano de publicação das Ilhas Desconhecidas”), que no início dos anos 50 e durante cerca de 10 anos alinharia entre os “branquinhos”, enquanto trabalhava na Câmara Municipal de Guimarães.
Em súmula, um livro ler e degustar, preferencialmente a bordo dum cruzeiro rumo às “Ilhas
Desconhecidas” e a uma viagem fruir e navegar com os próprios olhos, como este poema de Manuel Alegre sugere e impele:
“Atlântico até onde chega o olhar
E o resto é lava
e flores
Não há palavra
com tanto mar
como a a palavra Açores”…