Recordações de amigo(s)
Dói dizer-se que os homens não choram, ou que pelo menos não exteriorizam os seus sentimentos de pesar, nas lágrimas pondo freio.
É o caso do falecimento do homem bom, de nome António da Rocha e Costa, que no passado dia 9 de Julho, aos 74 anos, deixou o convívio dos amigos que tanto cultivava com esmero e respeito, sempre abnegado, cheio de bonomia e apaziguador.
Conheço este meu amigo desde os tempos de liceu, ainda jovens, no qual partilhamos os primeiros passos do conhecimento e as Nicolinas, em particular no desfile das Maçãzinhas: tu como patusco mexicano e eu como cônsul romano. Festas assinaladas posteriormente, anos após anos, no Jantar do Pinheiro e ainda nas quadras do Pinheiro, sujeitas a censura e, da tua parte, na redação de Pregões Nicolinos, em 1971, 1976 e 1981.
Respigamos uma simples estrofe do primeiro Pregão, sem o lápis azul da censura, datado de 1976, no qual é evidente o refinado espírito de humor e sentido crítico do autor, bem como o seu bairrismo sadio, de tom conciliatório, que sempre foi seu timbre ao longo da sua vida:
“Guimarães anda farta de ser enganada
Os sandeus abusam da nossa paciência
Fartam-se de dizer que não merecemos nada
Pois Braga deve ser o berço da Ciência.
Levante-se a cidade contra essa cambada
E sem construir muros ou usar violência
Mantenha-se bem firme para não ser levada
Pela baixa política da influência.”
Um Pregão, que ainda há dias, no período dos seus cuidados hospitalares, seria por ele recordado, quando emocionado me confidenciou que era declamado pelo médico José Cotter (que o recitara em 76), quando o visitava.
Rememoro ainda a nossa colaboração no jornal escolar “Alvorecer”, nos finais dos anos 60, sob a alçada do saudoso professor Acácio de Melo. Posteriormente, ambos faríamos ainda parte ativa do Centro Juvenil de Vila Pouca, que na altura e início dos anos 70, levava a efeito, sob a alçada de monsenhor Ferreira da Silva, uma interessante ação social e cultural, de que se destacavam as reflexões das Manhãs Juvenis, o desporto, o teatro e o jornal, atividades nas quais o António era figura marcante e omnipresente, nomeadamente na construção do recinto desportivo desta associação juvenil. Tempos de convívio e amizade que culminaria e seriam vivenciados em grupo, nesse Verão, nas Penhas Douradas, na labuta conjunta com os ceifeiros, festas de Manteigas e longas corridas de fundo na montanha, como preparação para o serviço militar que se avizinhava.
Recordo ainda a Récita dos Finalistas 71, no Teatro Jordão, na qual colaborou corajosamente com o amigo comum Carlos Poças Falcão em alguns números críticos anti-guerra colonial e repressão, alguns deles proibidos no decurso da sua exibição, que motivariam uma longa pateada monumental da plateia.
Outrossim, lembro as visitas a casa de seus pais no Bairro de Vila Verde, ou depois na Rua Capitão Alfredo Guimarães, que sempre acompanhava diligentemente e ainda as deslocações à casa das tias velhinhas, para as bandas da Costa, que tanto prezava e que sempre nos consolava com um lanchinho.
Bons tempos de adolescência que culminariam com a partida de ambos de comboio até Lisboa, onde ocorreu a nossa separação: ele para o quartel de Mafra e outros quartéis do país, onde vivenciou ativamente o 25 de Abril de 1974, em Espinho; eu para as Caldas da Rainha e Guiné-Bissau, entre 1972 e 1974.
Um reencontro que seria mais tarde retomado nas visitas periódicas à “república” na Rua Padre Cruz, no Porto, onde pontuavam outros amigos estudantes como os atuais médicos José Novais de Carvalho e Alberto Oliveira, o engenheiro Sousa Alves (que trabalharia na Câmara de Guimarães), entre outros, que era um ponto de encontro para as brincadeiras e ação política como aconteceria no decurso da manifestação anti-CDS, no Palácio Cristal.
Quis a vida que nos cruzássemos de novo nas Caldas das Taipas, onde o Rocha e Costa abrira um posto de recolhas de análises clínicas e eu trabalhava no Centro de Saúde local. Um outro ponto de confraternização, com alguns almoços à mistura, para dar à treta, mais tarde retomados mensalmente entre ambos. Uma vila onde igualmente travaria relações com a sua colega e estagiária Helena, mais tarde sua esposa, que lhe daria os filhos José e Ana e a mudança de Guimarães para Revinhade, em Felgueiras, onde ultimamente se refugiava amiudadamente na “reforma agrária” e sua estufa, ou convivendo com a família e inúmeros amigos que mantinha.
De facto, o Rocha e Costa, nascido em 6 de Janeiro de 1951, situação que motivaria um habitual cantar os Reis em sua casa em Revinhade licenciara-se pela Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, em 1977, iniciando a sua prestigiada carreira no âmbito das análises clínicas que o levariam a ser convidado a laborar numa instituição da área dos reagentes, em Munique, logo após a sua licenciatura.
Porém, uma carreira profissional que se iniciaria sobretudo em 1980 no Laboratório de Análises Clínicas Rocha e Sa, em Vila Nova de Famalicão, em parceria com uma colega de curso Salete Robles, que depois se estenderia a Guimarães e outras terras vizinhas, constituindo uma referência de qualidade a nível regional.
Habituado a subir a pulso na vida e trabalhador incansável, fez ainda incursões pela farmácia comunitária, adquirindo a sociedade farmacêutica La Salete Robles, a conhecida farmácia Santo António, em Urgezes, em cuja entrada consta um painel de azulejos do artista vimaranense Victor Costa e expunha a sua vasta coleção de imagens do santo popular, mostrando a sua ligação conhecida ao mundo artística e místico.
Aliás, em Urgezes, tal como muitos outros dos lugares que trilhava, foi ativo colaborador da comunidade, nomeadamente como membro do Conselho Escolar do Agrupamento de Escolas Gil Vicente, estabelecimento de ensino de que seria ainda colaborador assíduo em sessões formativas de saúde de âmbito juvenil, bem como na disponibilização da montra da sua farmácia para a iniciativa “Montras na Farmácia” , que frequentemente apresentava trabalhos dos alunos à comunidade e alusivos às Festas Nicolinas, que geralmente eram abordadas na escola. Connosco e teus amigos da escola, viajaste também em convívio, como naquela inesquecível visita a Praga.
Ademais, é igualmente de destacar o seu envolvimento na Secção Regional do Norte da Ordem dos Farmacêuticos. Deste modo, entre 2013-2016 presidiu à instituição, cuja adesão se iniciou ainda jovem, pela mão do Dr. Alfredo Albuquerque. Envolvência que noutros mandatos o conduziram à presidência da Direção Regional como bastonário e à presidência da Assembleia Geral, exercendo também funções no Conselho Jurisdicional Nacional.
Uma carreira profissional exímia e brilhante, que como especialista reconhecido, o levaria ainda a integrar vários Conselhos do Colégio da Especialidade de Análises Clínicas e à participação em diversos júris de exames para atribuição de título de especialista. Concomitantemente, seria também dirigente da Associação Portuguesa de Analistas Clínicos (APAC) e da Associação Nacional de Laboratórios Clínicos (ANL).
No entanto e paralelamente à sua emérita carreira profissional, Rocha e Costa, foi também um cidadão ativo e comprometido
De facto, é também relevante a sua ação no âmbito da Associação Muralha, dedicada à defesa do património, ao Centro Equestre de Guimarães do qual foi dirigente assumido e à Associação Familiar Vimaranense, instituição mutualista com mais de um século de história.
Relevante é ainda e, porém, a sua ação no semanário “Povo de Guimarães”, quer como colaborador, redator e diretor (1993-1999), aspeto que tivemos ensejo de comungar nas mesmas funções, em datas diferentes.
Um exemplo de dedicação, competência e dignidade que vai das iniciativas mais nobres às mais simples e afetivas. Recordo, por exemplo o acampamento nas Marinhas, em Esposende, em 1969, quando o homem alunava no satélite da Terra e o grupo “Os Mangas”, de que era líder, gozava uma segunda adolescência, antes da guerra colonial e construi-a a sua autonomia e aprendizagem coletiva.
Um lugar que, anos mais tarde, partilharíamos nessa mesma praia, quando o meu amigo Rocha e Costa, “convalescia” da separação do seu primeiro casamento.
Simplesmente um homem bom, amigo do seu amigo, que infelizmente partiu à nossa frente. Deixamos-te estas simples palavras, em nome do grupo “Mangas”, dos nossos tempos de juventude:
“Ao Homem de bem, solidário,
A amizade perene dos “Mangas”
Como amigo de peito e ideário
Qu’ até com mel adoçava zangas!
Ao amigo António Rocha e Costa
Nossa estima e consideração
Um ser humano de quem se gosta
Líder na terra e no firmamento.”
Até breve, caro amigo ...