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Santo Amaro, a primeira romaria do ano

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ sábado, janeiro 15, 2022
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Ano após ano, Santo Amaro celebra-se em Guimarães nas freguesias de Arosa, Donim, S. Martinho de Sande e Mascotelos, a 15 de Janeiro, assumindo-se como a primeira romaria do concelho vimaranense.

Porém, em Mascotelos, as celebrações de Santo Amaro adquirem um cunho peculiar. De facto, entre 15 de Janeiro e o domingo mais próximo, o santo é venerado quer religiosamente quer na perspetiva profana, destacando-se neste domínio o famigerado “jogo de brilhantes”, o arraial e especialmente a feira franca de gado bovino.

Efetivamente, para além dos aspetos religiosos, entre os quais se realça o ritual processional, no final da manhã de domingo, em que Santo Amaro segue em destaque no séquito, acompanhado pelos andores de S. Vicente e S. Sebastião, que consigo partilham o templo, bem como a missa solene, os pedidos de graças e cumprimento de promessas, nos quais os voventes se fazem acompanhar de cera modelada com a forma votiva das partes do corpo humano com enfermidades (braços, pernas, mãos, pés), a vertente profana é porventura a que mais sobressai nesta tradicional romaria. Com efeito, como escreveu Alberto Vieira Braga, “ir à romaria de Santo Amaro é ir ao encontro dos namorados, dos brilhantes, do movimento, da algazarra, dos bons farnéis e, por vezes, da larga pancadaria, entre os rivais do derriço”.

Talvez os tempos agora sejam outros e coisas houve que mudaram. Todavia, o arraial continua, na boa tradição minhota, com cantares ao desafio, grupos folclóricos, bandas filarmónicas e  música popular portuguesa, não faltando por vezes as atuações de  fanfarras, as exibições dos Zés Pereiras, os leilões de prendas e as sessões de foguetes ou de fogo de artifício, bem como a venda ambulante dos produtos mais diversos e inesperados, entre os quais se mantêm ainda as tendas das roscas e dos rosquilhos.

No entanto, a feira anual de gado bovino é provavelmente um dos principais números de interesse da romaria, no dia do santo (15 de Janeiro). Aí os lavradores reencontram velhos conhecidos e amigos e negoceiam seus animais, cujos preços normalmente são reguladores anuais dos valores do gado bovino. Contudo, nesta feira, para além do negócio, os camponeses mostram ainda o seu orgulho pelas suas criações de gado, exibindo com aparato suas reses, que geralmente exibem enfeites e asseio. Como escreve o citado etnógrafo vimaranense, “encarapinham-lhes a pelugem com vinagre e sabão, as hastes são envernizadas com azeite e os cascos com petróleo, enfeitando as cabeças das juntas e dos toiros com flores, quando não pendem das alentadas cachaceiras aquele luxo da coleiras mouriscas, a que chamam correões de campainhas, no tilintar de muitos sons franzinos e no engalho de muitas bolas pendentes”.

Aliás, como se documenta nas Memórias Paroquiais de 1758 sobre Mascotelos, inseridas no blogue Memórias de Araduca, a feira de gado de Santo Amaro é uma antiga realidade do burgo vimaranense. Com efeito, “ali acontecia uma feira de gado quinzenal que já se realizava em 1651. Em 1680, o rei D. Pedro emitiu uma provisão regulando a venda de géneros, com referência especial aos vinhos, na feira de Santo Amaro, com o propósito de evitar distúrbios entre os vendedores. Logo a seguir, o juiz e os vereadores da vila de Guimarães interpuseram um processo na Relação do Porto, com o propósito de levar a feira de gado de Santo Amaro para a vila. Em Abril de 1681, uma nova provisão régia ordenava que se respeitasse a deliberação da Câmara de Guimarães de passar a fazer a feira do gado na vila devido ao grande inconveniente em se fazer no dito lugar de Santo Amaro, onde se praticavam roubos, enganos e descaminhos, e por neste lugar de novo ser mais conveniente ao povo e arrecadação da fazenda real, sem embargo de qualquer sentença que houvesse da Relação do Porto”.

 Por sua vez, o “jogo dos brilhantes”, que consiste em atirar à cabeça dos romeiros, em especial jovens solteiros, papelinhos pequeninos, coloridos e brilhantes, em ritual de enamoramento, era um hábito tradicional desta festa, que julgamos já não se mantém, até porque o namoro tem hoje novas regras, inclusive eletrónicas. Porém, tempos atrás, era muitas vezes ponto de partida para levar ao altar matrimonial, mas também frequentemente motivação para brigas por rivalidade ou abusos, em especial quando os brilhantes eram despejados inadvertidamente sobre uma mulher casada ou comprometida.

Quanto ao santo, crê-se que terá nascido em Roma, quiçá em 510, e que terá sido entregue aos cuidados de São Bento, com apenas 12 anos. Com o seu mestre terá fundado em 528 a Abadia de Monte Cassino e introduzido na Gália a Ordem de São Bento. Contam-se entre os milagres deste monge beneditino que terá caminhado sobre as águas, sem se aperceber, para salvar o jovem Plácido de morrer afogado. Ainda, afirma-se que terá curado um garoto mudo e paralítico. Por isso, além de ser considerado um homem de virtudes e cumpridor do ideal monástico, é hoje venerado pela crença da sua intercessão para a cura das doenças relacionadas com os ossos. Deste modo, nos seus locais de culto os promitentes deixam frequentemente peças de cera em forma de braços ou pernas, mas também muletas, que são  ofertadas pelos fiéis curados e que já não precisam delas para caminhar sobre a vida.  Daí que, curiosamente, o santo seja iconograficamente apresentado com uma muleta, acompanhada por um báculo abacial, com sua vestimenta de frade, com capuz.

Relativamente à sua veneração, crê-se que remontará à data ancestral de 1604, data da primitiva edificação da sua capela em Mascotelos, que posteriormente em 1770 seria transformada em Igreja Paroquial.

Deste modo, a romaria de Santo Amaro, além da ser a primeira romaria do ano, fica ainda referenciada, em Mascotelos, como o tempo da feira de gado bovino, que outrora fora quinzenal, mas que ainda hoje se conserva anualmente, no dia do santo, como reguladora do mercado, conforme nos narra Alberto Vieira Braga: “ainda ali se efetua a 15 de Janeiro de cada na ano, sendo a maior do concelho, porque é reguladora dos preços do gado bovino”.

Santo Amaro é também referido por Francisco Martins Sarmento, na sua obra “Antíqua – Tradições e Contos Populares”, que compila apontamentos de carácter etnográfico, de cuja obra transcrevemos esta história fabulosa:

 

No monte de Santo Amaro tem sido visto de noite e ainda há pouco tempo um vulto estranho: é um vulto duma altura desconforme, vestido duma como alva de padre, mas sem cabeça nem mãos. Traz um guarda-chuva. Como o segura, se não tem mãos? Não se sabe. Sabe-se que não tem mãos e se cobre comum guarda-chuva. Que não tem cabeça também não sofre de dúvida, porque, bem que o guarda-chuva deva cobrir-lhe a cabeça, os que o viram afirmam que ele se volta para um lado e para o outro, deixando ver claramente que é decapitado.(Irmã da Grácia).

Porém, histórias encantatórias à parte, a localidade e o santo são sobretudo conhecidos pela  primeira romaria do ano do concelho vimaranense e como o +padroado dos ossos, ainda que o orago da freguesia seja S. Vicente.

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