Saudade Nicolina
Entre Novembro e Dezembro acendem-se as luzes da festa natalícia e deitam-se contas à vida para a compra dos presentes da praxe, uma vez que o subsídio de Natal aquece os bolsos.
Por cá, como a tradição ainda é o que era, as Nicolinas saem para a rua, nem sempre com o primor que alguns números exigem e tão-pouco com um trabalho prévio de informação secular e cívica no seio da comunidade escolar que a sua história merece.
Em tempos profissionais anos atrás, prezamos valorativamente os projetos escolares em torno das Nicolinas, como outrora eram levados no Agrupamento de Escolas Gil Vicente e mais recentemente na UNAGUI. Em especial e concreto na restauração do Dízimo de Urgezes, mas também nos colóquios informativos, ou atividades que fomentariam a criatividade escolar. Cito entre várias iniciativas a representação do Auto do Dízimio de Urgezes na Junta de Freguesia, na escrita e declamação do Pregãozinho na UNAGUI, na execução artística em Educação Visual e Tecnológica de um carro alegórico para o desfile das Maçãzinhas, ou a encenação em 2010, pelo Clube de Teatro, do Auto Nicolino em torno do centenário da República e 150 anos da Senhora Aninhas.
Recordo ainda sob o tema das Nicolinas, as Montras na Farmácia Santo António, da qual era responsável o saudoso António da Rocha e Costa, que foi autor de três Pregões (1971, 1976 e 1981) e que este ano foi homenageado pelo seu grupo de amigos do Jantar do Pinheiro.
Assim, nestas Nicolinas da saudade, neste ano de 2025, recordo o bom e eterno amigo António da Rocha e Costa, transcrevendo algumas estrofes do seu Pregão de 1976, um dos primeiros pós 25 de Abril, data que ele sentiu e vivenciou intensamente como alferes, no quartel de Espinho.
Um Pregão que no decurso do seu internamento do autor no Hospital de Guimarães, seria emotivamente declamado pelo atual médico José Cotter, aquando das suas visitas clínicas, ele que década de 70 fora o jovem pregoeiro de serviço.
Aqui ficam, 50 anos depois, após o recente falecimento do seu autor, essas estrofes barulhentas de reencontro e saudade:
SILÊNCIO!
Ninguém ouse abafar a voz do pregoeiro
Que das aves canoras possui a melodia
Herdando do trovão o fragor por inteiro
Como um clarão imenso das trevas alumia.
(...)
Tocou a antiga “cabra” há dias no liceu
A malta perfilou a capa e a batina,
- Nicolau bradou e tudo estremeceu
Ergueram-se o Sampaio, o Caldas e o Pina
Com outros que repousavam na noite de breu,
Acenderam-se archotes de canto em quina,
De torrentes de luz o burgo se encheu
Para acolher o brio da Festa Nicolina.
Rufaram os tambores junto à Mumadona
Ferindo-nos os tímpanos com tal troar
Que alguém desprevenido que andava na zona
Logo telefonou à Rádio a perguntar
Se não seria golpe ou mais uma intentona.
(...)
Guimarães anda farto de ser enganado
Os sandeus abusam da nossa paciência
Fartam-se de dizer que não merecemos nada
Pois Braga deve ser o berço da Ciência
Levante-se a cidade contra essa cambada
E sem construir muros ou usar a violência
Mantenha-se bem firme para não ser levada
Pela baixa política da influência.
Ignóbeis abutres de garra usurpadora
Já levaram metade do Parque Industrial
E com desfaçatez devoram-nos agora
O Banco mais antigo do nosso Toural.
Imaginem que a gente em jeito de desforra
Instala nesta urbe o Paço Episcopal!
E em nome da Justiça exige sem demora
Que seja do Distrito aqui a capital.
(...)
Valha-nos Esculápio, atente em nosso mal
Cessem já os tormentos da horda plebeia
Que no conventual e sóbrio Hospital
Busca para a moléstia eficaz panaceia.
O povo já não vai no chá medicinal
Essa antiga mezinha de farmacopeia
Com que o estagiário de ar doutoral
Procura debelar a forte diarreia.
Mas nesta Babilónia nem tudo é tormenta:
Uma onde de progresso e dinamização
Trouxe-nos até cá a maré cinzenta
Das torres de cimento da urbanização
Que a mão do operário e a sua ferramenta
Levantam, da Quintã até à Conceição,
Atenuando a falta, que nos apoquenta,
De uma acolhedora e digna habitação.
(...)
Na longa caminhada, dura e sinuosa,
Que às portas de Abril teve o seu início
Tantas vezes o cravo e outras tantas rosas
Tem a democracia sido o nosso ofício.
Porém não confiar, a História é caprichosa
E quem da confiança adquirir o vício
Poderá ver ruir de forma desastrosa
O ainda inacabado e frágil edifício.
Cansados de carpir a nossa triste sina
Por ver levar as coisas excessivo aumento
Veremos outra vez subir a gasolina
Enquanto os Mercedes, às portas de S. Bento,
Não sofrem restrições no abastecimento.
Bem prega Frei Tomás ...mas a sua doutrina
Não obriga o pregador a dar-lhe cumprimento.
“Ou isto arrebenta ou dá estouro”
Dizia-me uma velha presa à nostalgia,
Obrigada a vender meia libra de ouro
Para pagar a conta da mercearia.
Oh, bom S. Cipriano: afasta o mau agouro
Faz com que a boa velha exulte de alegria
Quando puder comprar com Títulos de Tesouro
Um grosso bacalhau e um quilo d’aletria.
(...)
Estava a Academia posta em sossego
Curtindo do saber efémera ilusão,
Naquele engano d’alma até o próprio cego
Julgava saber mais que o Rei Salomão.
Distintos engenheiros leccionavam grego
Sem terem para isso habilitação
Era então o ensino próspero emprego
Que a todos garantia uma colocação.
(...)
Para vós garotas, que sois o nosso encanto
Não podia faltar o doce galanteio.
Vamos rir e folgar para afastar o pranto
Que de tristeza e dor vai este mundo cheio.
Sob esta capa rota, caloroso manto
Palpita uma quimera, um ardente anseio
De sabermos um dia quanto é bom, oh quanto!...
Entrar no “paraíso” pela porta do meio.
(...)
Nicolinos de gema, ó filhos de Minerva!
Fazei barulho tal que possa ouvir-se em Roma
Com a força viril que a juventude conserva
Deixai-me essas zabumbas em estado de coma!
Um Pregão que é um documento de uma época, mas também um hino de saudade e eterna amizade ...