Teófilo Braga
Ligado a Guimarães pela Casa do Paço, na freguesia de São João de Airão, espaço de que era herdeira a esposa de Teófilo Braga, consta que o escritor frequentemente encontrava nesta casa um refúgio ideal para a sua dedicação à escrita e aqui teria criado muitas das suas obras e recolhido as denominadas lendas de Airão.
É o caso da lenda “A Raposa no galinheiro”, que transcrevemos:
“De uma vez uma raposa apanhou um buraquinho num galinheiro, entrou para dentro fazendo-se muito esguia, e depois que se viu lá, comeu galinhas à farta. Quando foi para sai, estava com a barriga muito cheia, e por mais que fez não pôde passar pelo buraco. Viu-se perdida, porque já vinha amanhecendo. Por fim teve uma lembrança. Fingiu-se morto.
De manhã veio o lavrador e viu-a:
- Cá está ela. E que estrago me fez!
Vai para lhe dar pancadas e matá-la, mas vê-a hirta, com a língua atravessada no dentes e olhar envidraçado.
- Poupaste-me trabalho, morreste arrebentada. Foi bom.
E pegando-lhe pelas pernas atira-a para o meio da horta para a enterrar. A raposa assim que se viu fora do galinheiro, pernas para que vos quero e botou a fugir pelos campos fora e fez do rabo bandeira!
O lavrador deu a cardada do dianho e jurou que nunca mais se fiaria em raposas.”
Com efeito, homem multifacetado, quer como político fundador do Partido Republicano e posteriormente Presidente da República, quer como erudito conceituado, enquanto investigador, crítico e escritor compulsivo, Joaquim Fernandes Braga, que aos dez anos se matricularia na instrução primária com o nome Teófilo, nasceria em Ponta Delgada a 14 de Fevereiro de 1843 e faleceria em 26 de Janeiro de 1924, faz agora cem anos, tendo sido um dos mais prolíficos escritores portugueses.
De facto, contam-se mais de duas centenas de títulos no âmbito da sua produção literária e investigativa, que amava apaixonadamente, pois, como diria, bastava-lhe para viver "um poço, desde que lá tivesse os meus livros, uma resma de papel e um lápis".
Licenciado e doutorado em Direito em Coimbra, onde viveria entre 1862 e 1867, provindo da ilha açoriana de S. Miguel, o jovem Teófilo rumaria à cidade coimbrã com apenas 18 anos, após a frequência do ensino secundário no Liceu de Ponta Delgada, local em que iniciaria a sua atividade literária em jornais e revistas locais. Uma vida infanto-juvenil que após a morte da mãe, aos 3 anos, o levaria a sofrer os rigores de uma madrasta rígida, que lhe teriam moldado um carácter fechado e agreste. Aliás, o jovem Teófilo também não teria vida fácil em Coimbra, uma vez que seria forçado a viver esses anos às suas custas em trabalhos de subsistência no âmbito da tradução, recurso a explicações e publicação de poemas e artigos, tarefas que desempenharia em paralelo com a vida estudantil e a luta académica, designadamente no contexto da Questão Coimbrã.
Mas também não seria fácil a sua inserção na vida laboral. Com efeito, e não obstante as suas credenciais educativas e formativas, não correram bem os seus primeiros concursos à vida profissional, tendo sido preterido em várias situações de candidatura. Porém, em 1872 acabaria por assumir a cátedra de Literaturas Modernas no Curso Superior de Letras e radicar-se-ia em Lisboa, cidade onde viveria sobriamente.
De facto, homem "simples, sóbrio, duro, com hábito de uma austeridade de espartano" - afirma Ramalho Ortigão -"não publica um volume por semana, pela razão única de que não há prelos em Portugal que acompanhem a velocidade vertiginosa da sua pena. Escreve de graça, desinteressadamente, em satisfação do seu prazer de espalhar ideias."
Efetivamente, após a sua deslocação para Lisboa, e depois do casamento com Maria do Carmo Xavier, do qual nascem três filhos, Teófilo Braga dedica parte substancial da sua vida à escrita e à política. Deste modo, funda e dirige a “Revista Positivista” (1878), torna-se diretor da “Era Nova” (1880), dirige a revista “Revista de Estudos Livres” (1884) e colabora em inúmeras outras publicações periódicas. Concomitantemente, envolve-se na organização do tricentenário da morte de Camões, que considerava o símbolo do "sentimento coletivo que fortifica o sentimento da pátria e da nacionalidade."
Todavia, quanto à sua obra, iniciada literariamente com o livro poético “Folhas Verdes” (1859, que acabaria por abarcar a poesia, a ficção, o ensaio, bem como antologias e recolhas diversas, podemos afirmar que enveredou por três orientações basilares:
- a tentativa de elaboração poética de uma história filosófica da humanidade, que os cinco volumes de “Visão dos Tempos”, “Tempestades Sonoras”, ambos em 1864, que sob a influência por Vítor Hugo, Michelet, Hegel e Vico, expõem uma conceção de poesia filosófica e que têm seguimento com “A Ondina do Lago” (1866), “Torrentes” (1869) e “Miragens Seculares”(1884);
- o interesse folclorista, evidenciado na recolha e no estudo de poesias, lendas mitos e contos populares tradicionais, que numa primeira fase se traduz na publicação do “Cancioneiro Popular”, “Romanceiro Geral”, e a “História da Poesia Popular Portuguesa”, em 1867, trabalhos centrados no estudo das origens da literatura portuguesa, que são retomados numa segunda fase, em 1883, com a publicação dos “Contos Tradicionais Portugueses” ;
- a redação de uma História da Literatura Portuguesa, com especial incidência na poesia popular e na literatura do século XIX.
Assim e concretamente neste âmbito, surgem obras como “História da Poesia Moderna Portuguesa”, em 1869, a que se segue a “História da Portuguesa Literatura Portuguesa” (1870), a “História do Teatro Português”(1870/1871) e “Teoria da História da Literatura Portuguesa” (1872), bem como o “Manual da História da Literatura Portuguesa” (1876). Publicações e trabalho porfiado a que juntaria ainda figuras da literatura nacional como “Bocage, sua vida e época literária” (1877), ”Camões e o sentimento nacional” (1891), assim como os dois volumes Garrett e as origens do teatro vicentino, patentes nos tomos “Gil Vicente e as origens do teatro português” e “ A Escola de Gil Vicente e o desenvolvimento do teatro nacional”, ambos de 1898.
Trabalhos que mais tarde, orientaria os seus estudos literários para a os autores e obras contemporâneas, legando-nos, entre outros, obras como a “História do Romantismo em Portugal” (1880) e “As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa” (1882).
Paralelamente, numa perspetiva multifacetada, escreveria também ficção, iniciando-se com a coletânea “Contos Fantásticos “ (1865) e “Viriato” (1904), mas sobretudo inúmeros ensaios, em especial no contexto da filosofia positivista, como “Traços Gerais da Filosofia Positivista”(1887) e “Sistema de Sociologia” (1884). No entanto, uma diversificação investigativa que alargar-se-ia ainda à “História da Universidade de Coimbra” (1871-1902), importante pesquisa que constitui uma síntese da história cultural portuguesa e ainda à doutrinação política, como são o caso da “História das Ideias Republicanas em Portugal” (1880) e “Soluções positivas da política portuguesa” (1912)
Realmente, quer pelas suas obras literárias quer pela sua ação pública, em particular no seio do Partido Republicano Português, Teófilo Braga seria o principal representante e ideólogo
do pensamento republicano, laico e pequeno-burguês, que várias vezes se veria forçado a terçar armas com outros contendores, quer do ponto de vista literário quer politico, como Castilho, Camilo, Ricardo Jorge e Antero de Quental, que embora reconheça o seu papel pioneiro no estudo da história literária portuguesa, considera que "tem defeitos: a impaciência, que o leva muitas vezes a conclusões prematuras; e o espírito sistemático que o leva também a conclusões falsas (…) Ao mesmo tempo quimérico e sistemático , dá às suas doutrinas gerais uma feição dogmática que lhes tira aquele poder de ductilidade e compreensão (…)"
Paralelamente, Teófilo Braga iniciaria a sua ação política, concorrendo como deputado às Cortes da Monarquia Constitucional Portuguesa, integrando as listas dos republicanos federalistas, atividade política que o leva posteriormente, nos anos 90, ao diretório do Partido Republicano Português; e em 1910 a ser eleito deputado republicano por Lisboa às cortes monárquicas, cargo do qual não tomaria posse, em consequência da queda da monarquia e instauração do regime republicado, em 5 de Outubro de 1910.
Com efeito, neste período inicial do regime republicano e do Governo Provisório da República Portuguesa, Teófilo Braga seria nomeado por decreto de 6 de Outubro para a presidência, cargo que vem mais tarde a reassumir interinamente, em 1915, após a demissão de Manuel de Arriaga, cujo ato de posse já não seria presenciado pela sua esposa, falecida quatro anos antes.
Em conclusão, um homem que Ramalho Ortigão consideraria " débil de aspeto um pouco valetudinário , dorso curvo, ventre chato, estômago escavado, deixando descair as calças em pregas sobre os sapatos", mas que reputa como "o mais forte, o mais rijo, o mais enérgico temperamento que tenho conhecido."
Um homem erudito e cidadão político que andava a pé na cidade, ou utilizava transportes públicos, mesmo quando era presidente do país. Um presidente que, segundo consta, recusaria honras e ostentações “ e andava proletariamente de elétrico, com o guarda-chuva no braço, ou de bengala sem ponteira”.
Um homem que nunca saiu das suas fronteiras portuguesas e um açoriano que jamais voltaria às suas ilhas, apesar do seu orgulho de ser ilhéu e glosar os seus temas, como o comprova a obra "Cantos Populares do Arquipélago Açoriano" (1869).
Um homem que muitos de nós ainda recordamos nas antigas notas de mil escudos, entre 1988 e 1997 e que em Guimarães está evocado na toponímia local, em São João de Airão, onde esporadicamente se refugiava e observava o homem minhoto:
“(…) eu conheço o homem do Minho arrebentando de trabalho, mal comido, mal vestido, mal abrigado em choças escuras, e observei-o em todos os seus trabalhos desde o roçar no monte até as doentias malhadas de centeio.(…) E contudo cantam, dançam, amam, expandem-se pelas Romarias, que é esse o carácter da resistência inquebrantável da nossa raça lusa (…)”
Faleceria só no gabinete de trabalho de sua casa, vítima de morte súbita, anos depois de ter sofrido o falecimento antecipado dos filhos e da esposa. Era o dia 26 de Janeiro de 1924, já lá vão 100 anos.